Redigida no ano de 1874, passados quase trinta anos dos acontecimentos, o liberal Joaquim Rodrigues dos Santos publica a carta abaixo narrando a sua versão sobre os fatos da Cabanagem em Santarém. Este documento serviu de base que, anos mais tarde, seu sobrinho, o historiador santareno Paulo Rodrigues dos Santos, escrevesse sobre esse assunto na sua grande obra: “Tupaiulândia”. Este documento chama atenção pois, nele, vemos o futuro Barão de Santarém como um dos líderes da Cabanagem no município. Esta carta também está publicada no livro “Pequena cronologia da Cabanagem no Baixo Amazonas e Tapajós” (2019. Imagem ilustrativa da cabanagem feita pelo desenhista Denilson Borges.
Ilmo.
Sr. Redator do “Diário de Belém”.
Depois
de atrozmente injuriado no jornal que se publica na imprensa do sr. Barão de
Santarém, ainda me persuadi que ele teria sido alheio a esse procedimento, e
que depois de ler o artigo, tomaria à posição que lhe competia senão para
desagravar o velho amigo, ao menos pelo respeito devido ao decoro das famílias
e a dignidade de sua posição social; esperei alguns dias e só depois de
convencer-me que tais calúnias e injúrias eram por ele tomadas como coisa de
nonada, tomei a resolução de desafrontar-me pelos meios legais, confesso
ingenuamente que nesse procedimento não fui inspirado por ninguém; ao contrário,
fui eu quem procurou as outras vítimas para de acordo chamarmos a juízo os
proprietários da imprensa, que nos feriu no que possuímos de mais sagrado.
Eu
sei que infelizmente a lei, relativa à imprensa, é carente de remédio para os
que são feridos por mão do sicário que se acoberta com a responsabilidade do
desgraçado, ou do pobre ignorante que presta sua assinatura sem consciência do
mal que faz; mas servir-me-á ao menos de alguma consolação o patentear a toda
luz, ao governo, ao respeitável público e mais especialmente aos habitantes
desta Comarca, que a influência oficial do sr. Miguel Pinto se tem tornado tão
perniciosa a esta boa terra, ao ponto de estabelecer e manter nela uma imprensa
de onde emana toda sorte de calúnias e afrontosas injúrias sem excetuar-se o
sagrado da família!...
Declaro
perante Deus que não concorri para que aparecesse esta luta em terreno tão
melindroso; não sou levado por ninguém, tanto assim, que não quero confiar meus
pobres escritos à correção de pena hábil por não desejar que sejam alterados
meus pensamentos.
Depois
de publicado no jornal do sr. Miguel Pinto o artigo que tem por epigrafe “Quem
semeia ventos colhe tempestades”, tem sido constante àquele jornal em
dirigir-me insultos, que revertem intactos aos que me os dirigem, pois, mercê
de Deus, sou conhecido em toda a Província, e mui especialmente no lugar do meu
domicílio; e porque o sr. Miguel Pinto blasonou de me haver tirado do pó,
dando-me posição oficial, fortuna, etc., etc., sou forçado em defesa do meu
crédito e dignidade, e mesmo para que não passe a ideia de que sou um ingrato,
a historiar fatos de nossa vida pública a fim de que os que não nos conhecem se
convençam da verdade e nos façam justiça.
Quando
me apartei da casa paterna, deixando a Capital, em setembro de 1833, trouxe
para esta cidade, então vila, uma receita de mercadorias com que me estabeleci
no comércio, e logo depois conheci o sr. Miguel Pinto, filho de uma das mais
distintas famílias do lugar a quem sempre respeitei; vivia ele em seu sítio
donde vinha quando seus negócios a isso o chamavam. Contava eu então vinte e um
anos de idade e não obstante tive a fortuna de obter as simpatias e amizade das
pessoas mais gradas do lugar.
Quando,
em 1835, rebentou na Capital a terrível revolução dos cabanos veio a toda a
pressa para nós o honrado sr. Dr. Joaquim Rodrigues de Sousa, de saudosa
memória, primeiro juiz de direito desta Comarca, e logo que chegou tratou dos
meios de defesa, chamando às armas a Guarda Nacional, bem como outros cidadãos
no caso de prestarem serviço: aquartelou-se a força no sobrado dos senhores
Mirandas, que foi denominado Quartel do Sol, servindo os baixos dessa casa para
depósito de armamento, munição e utensílios.
Lavrando
então na Capital a mais feroz anarquia, a qual começava a estender-se pelo
interior, quando o honrado e distinto primeiro magistrado da Comarca reuniu as
demais autoridades e em Conselho foi deliberado que se criasse: uma Junta de
Salvação Pública, destacamentos em diferentes pontos, registros de embarcações,
subscrições para obter-se meios com que sustentar a força em armas, e a criação
de um corpo provisório de artilharia cívica, visto que tínhamos três peças de
campanha de bronze de calibre 2.
A
força para compor este corpo foi tirada da Guarda Nacional, e eu tive a
distinta honra de ser eleito, por votação unanime de meus camaradas para o seu
comando.
A
esse tempo servia o sr. Miguel Pinto, hoje Barão de Santarém, no posto de
sargento quartel-mestre da Guarda Nacional, alojada no Quartel do Sol.
O
nosso Corpo de Artilharia aquartelou na casa de Luiz Sirotheau, à rua de Santa
Cruz, travessa dos Mártires, e em pouco tempo distinguiu-se pela dedicação à
ordem e fidelidade às autoridades legalmente constituídas.
Depois
de onze meses de aturado serviço, interceptadas inteiramente as comunicações
com a capital, derrotada a expedição legal no ponto rebelde de Ecuipiranga,
sentiu-se deserção de certos homens das fileiras da Guarda Nacional, e
passando-se a examinar os depósitos encontrou-se grande falta nos armamentos e
munições, que tinham sido passadas oculta e traiçoeiramente para os pontos
rebeldes de Ecuipiranga e Surubiú-miri.
Reunido
nesse dia o Conselho de autoridades foi o Juiz de Direito desrespeitado e sua
vida ameaçada por um Brancer, que de punhal em punho rompeu vivas ao governo
intruso; a casa da Câmara foi invadida por grande número de pessoas; houve
pranto, grito e confusão, e felizmente a primeira autoridade da Comarca foi
salva por seus amigos que o acompanharam para bordo da escuna armada em guerra,
ancorada neste porto.
Ao
desembarcar de bordo da dita escuna encontrei tudo em tal confusão que ninguém
se entendia e dirigindo-me ao Quartel vi e presenciei andar o sr. Miguel Pinto
armado ao lado de Brancer, que capitaneava a populaça amotinada proclamando a
queda da autoridade do Juiz de Direito e dando vivas ao triunfo da revolução!
Nessa noite entraram magotes de homens armados e foram distribuídos por
diferentes pontos da vila. No dia seguinte o Juiz de Direito proclamou de bordo
aconselhando obediência ao governo de S. M. o Imperador, e a união dos bons
brasileiros para debelar os anarquistas. Estes conselhos foram recebidos com
chincalhos e assuadas pelo sr. Miguel Pinto e outros que se mostravam
excessivamente exaltados... O honrado Magistrado recebendo respostas da Câmara
Municipal e das outras autoridades, querendo evitar efusão de sangue, declarou
retirar-se no dia seguinte para Monte Alegre, distrito da Comarca. Eu e outros
amigos acompanhamos a autoridade legal deixando o sr. Miguel Pinto saboreando o
prazer do seu triunfo.
Todos
os meus haveres haviam sido consumidos com prestações para sustentação da força
legal, restando-me apenas os baús, roupas e cento e tantos mil réis em moeda.
Ao chegarmos à ilha das Cuieiras, nas imediações de Monte Alegre, obtivemos
notícia de que no mesmo dia em que aqui se fez a tentativa de assassinar o Juiz
de Direito havia ali rompido a revolução, sendo vítimas o honrado capitão mor
Nicolau da Gama e outros e entregue a Vila aos estragos da mais completa
anarquia. Esta triste notícia colhemos de um correio que por fortuna
aprisionamos e que vinha com ofício à Câmara de Municipal de Santarém. À vista
do estado a que estava reduzido Monte Alegre, resolveu o Juiz de Direito que se
fizesse proa a Gurupá.
Ali
encontramos tudo em armas e em muito boa ordem sob a direção do respeitável
ancião João Urbano da Fonseca, honrado e abastado morador do lugar, que nos
recebeu nos braços e prodigalizou para conosco tudo quanto podia em relação à
hospedagem, boas e delicadas maneiras, etc., etc..
Achando-se
já a esse tempo estabelecido o acampamento do Arapiranga, para onde se havia
retirado o velho e honrado general exmo. sr. Manoel Jorge Rodrigues, quando foi
forçado a evacuar a Capital e estabelecido o bloqueio dessa cidade, o Juiz de
Direito Joaquim Rodrigues de Souza, desejando conferenciar com o governo legal,
resolveu nossa retirada para Macapá, donde seguimos para o acampamento do
Arapiranga pela ponta do Maguari. Macapá era então uma verdadeira praça de
armas; tinha muita gente armada sob o comando do honrado major Monterrozo,
militar experimentado, de grande prestígio naquela época.
Dois
dias depois de nossa chegada ali recebemos a dolorosa notícia da entrada dos
cabanos em Santarém, dos bárbaros assassinatos por eles perpetrados nas pessoas
de venerandos e pacíficos anciãos, dos inúmeros desacatos feitos a outros
cidadãos respeitáveis, e da fuga precipitada das famílias para Prainha,
sofrendo as maiores misérias que imaginar se pode!...
Os
imigrantes de Santarém, residentes então em Macapá, que tantos sacrifícios
haviam feito a favor da causa da legalidade, ao receberem tão infausta notícia,
abraçados choravam de profunda dor... Oh! E quantas acusações então se não
faziam aos homens que com o sr. Miguel Pinto promoveram as dissenções, a falta
de respeito à autoridade, e por último abraçaram a rebelião! Sim, foram eles a
causa de perder-se um ponto legal tão importante, onde já se tinha amontoado a
troco de imenso trabalho tantos meios de defesa, que de um momento para outro a
intriga e a traição passou para as mãos dos revolucionários que tantas
desgraças causaram e tanto sangue inocente derramaram.
Não
resta a menor dúvida que assim como Cametá, Macapá, Gurupá, Prainha e Óbidos
sustentaram-se firmes na obediência ao governo legal, Santarém sustentar-se-ia
também, a não ocorrerem os fatos acima fielmente descritos.
Este
é o primeiro período da minha vida pública e da do sr. Miguel Pinto, hoje Barão
de Santarém, a contar-se de setembro de 1833 até maio de 1836, achando-me nesta
última época imigrado em Macapá.
Até
esse tempo éramos apenas dois conhecidos que militavam em campo diverso: eu
sempre acérrimo defensor da ordem, do princípio de autoridade e do sistema que
felizmente nos rege, e o sr. Miguel Pinto, provando por fatos um procedimento
em tudo contrário, ao ponto de prestar obediência ao chefe dos rebeldes.
Confesso
que sinto-me possuído de grande e profundo desgosto, maldigo mil vezes o
sicário que me tem ferido e obrigado a lançar-me em um terreno tão contrário
aos meus princípios; agora não tenho outro remédio, continuarei na tarefa de
publicar minha defesa, pedindo ao respeitável público que se digne desculpar o
ter de falar dos pequenos serviços que tenho prestado ao meu país, acreditando
que se os trago à luz da imprensa não é por deles fazer alarde, mas pela
necessidade de provar que para a minha pequenina posição oficial nada concorreu
o sr. Miguel Pinto.
Santarém,
12 de julho de 1874.
Joaquim
Rodrigues dos Santos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário