Por Pe. Sidney Augusto Canto
No ano de 2015, fui
procurado por um grupo de alunos e professores da Universidade Federal do Oeste
do Pará – UFOPA, que estavam atrás de dados sobre os primórdios históricos da
arte musical em Santarém.
Sendo a música uma arte humana,
podemos afirmar, sem nenhuma sombra de dúvida, que Santarém é uma terra de
musicalidade tão antiga quanto a presença humana na foz do “Paraná-Pixuna” (o
Rio Preto), que hoje conhecemos como Rio Tapajós. Os indígenas da foz do rio
Tapajós, bem como outros povos que habitavam a região do Baixo-Amazonas e
Tapajós, tinham uma cultura artística e rituais que outrora pareceram estranhos
para os conquistadores espanhóis, franceses, ingleses e portugueses que para cá
vieram nos séculos XVI e XVII. Infelizmente, pouco se registrou da música
desses indígenas. O pouco que temos, entretanto, leva-nos a crer que eram povos
ativamente musicais. Para ilustrar, vejamos a descrição feita por Maurício Heriarte
sobre a vida cultural dos Tapajós:
Estando maduras as
sementeiras, dá cada um a décima, e tudo junto o metem na casa em que tem os
ídolos, dizendo que aquilo é Potaba de
Aura, que na sua língua, é o nome do diabo; e deste milho fazem todas as
semanas quantidade de vinho, e à 5ª feira de noite o levam em grandes vasilhas
a uma eira, que detrás da sua aldeia tem muito limpa e asseada, no qual se
ajuntam todos daquela nação, e com trombetas, e atabaques tristes e funestos,
começam a tocar por espaço de uma hora até que vem um grandíssimo terremoto,
que parece vem derrubando as árvores e os montes, e com ele vem o Diabo e se
mete em um corro, que os índios tem feito para ele, e logo todos com a vinda do
Diabo, começam a bailar e cantar na sua língua, e a beber vinho até que se
acabe, e com isto os traz o Demônio enganados.
A música dos nossos
antepassados indígenas era pautada pelo ritmo, daí a importância de tambores,
maracás e outros instrumentos rítmicos na música indígena. Ao contrário da
cultura ocidental, onde a melodia e harmonia aparentam ter muito mais
importância, nossos indígenas seguiam ritmos compassados pelos pés, ou
batuques, ou mesmo pelo som de instrumentos melódicos como flautas, trombetas e
outros instrumentos de sopro rudimentares que eram importantes para a animação do
ritmo.
A música indígena era de uso
ritual. Estava presente no culto aos mortos, principalmente aos grandes
antepassados, que, entre os tapajós, eram corpos mumificados, conhecidos como
monhangaripes. Também era usada nos ritos de passagem (nascimento, puberdade,
casamento, morte), bem como em outras cerimônias rituais, tais como a caça, a
pesca, o plantio, além da guerra e da paz. A música se fazia necessária também
nas cerimonias de pajelança, que não era simples curandeirismo, mas uma
medicina natural e ao mesmo tempo espiritual de cura para o doente. O pajé
conhecia músicas que espantavam os maus espíritos que podiam estar perturbando
a paz corporal e espiritual do doente, essas músicas eram particulares e só
podiam ser cantadas pelo pajé.
Quando os jesuítas e,
posteriormente, os franciscanos chegaram em nossa região, ainda no século XVII,
essa musicalidade natural dos indígenas foi aproveitada para fins de catequese.
Um dos padres músicos, que foi missionário ente os tapajó, foi o padre jesuíta
João Maria Gorzoni. Sabemos que, após visitar as Missões ao longo do rio
Amazonas, na qualidade de Superior dos Missionários no Grão Pará, o Pe. João
Felipe Bettendorff enviou o Padre João Maria Gorzoni, italiano de Mântua, para
a Aldeia dos Tapajós. Foi esse sacerdote que edificou novamente a Missão,
construindo residência e Igreja em taipa de pilão, mas coberta de palha. No
campo artístico, o Padre Gorzoni foi mais longe, conforme diz o próprio
Bettendorff em sua “Crônica”:
Com
o atrativo da música, Padre João conseguiu reunir os garotos índios e não
índios, que já se contavam por um bom número, em agradáveis festinhas
religiosas e procissões (talvez
o que depois se chamou “Sairé”) em que,
levando a frente a imagem ou um quadro da Virgem Senhora Nossa, cantavam
alternadamente: Tupã ci angaturama – Santa Maria Cristo Iara ou então o
Caturetê Rosário (Bendito o Rosário) ao som das gaitinhas e tamborins fabricado
pelos próprios índios.
Essas
procissões, músicas e festas atraíram mais do que as palavras amigas do
missionário que também os fazia cantar dentro da capelinha de pindoba, ajudando
a missa e outras rezas. Alguns garotos já dedilhavam com bastante jeitinho as
escalas da flauta e sabiam dar o seu recado...
A descrição acima, feito pelo
padre fundador da Missão Religiosa entre os tapajós, é um relato bem antigo que
nos informa da musicalidade tapajoara já envolto pela mesclagem cultural que
permeia a Amazônia até os nossos dias. A música europeia, principalmente a
música sacra, passou a ser conhecida pelos indígenas, bem como novos
instrumentos, aqui introduzidos pelo colonizador. Se antes o instrumento sonoro
básico era o de sopro, principalmente a flauta e a trombeta, logo os indígenas
conheceriam os instrumentos de “corda” (popularmente conhecidos como rabecas).
Incontestavelmente, o maior
resquício musical desse período missionário é o Sairé. Não o Sairé que existe
hoje, mas o Sairé dançado e cantado na língua geral, entre nós conhecida como
nheengatu. Algumas das letras e músicas foram resgatadas no final do século
XIX, pelo botânico João Barbosa Rodrigues. Mais informações sobre o Sairé podem
ser vistas no meu livro “Alter do Chão e Sairé: contribuição para a História
(2014)”.
Outra tradição musical que vem
do período missionário e que também passou a ser praticada pelos indígenas, são
as folias. Ligadas à festa do santo padroeiro, e principalmente às festas do
Divino Espírito Santo, que eram comuns nas Missões Religiosas, as folias são
músicas tradicionalmente conhecidas pelo uso de voz humana, que dá a melodia de
cantos religiosos, acompanhadas por instrumentos de percussão que sustentam o
ritmo.
Esses grupos de foliões
geralmente fazem seus próprios instrumentos: caixas, tambores, maracás e
reque-reques de materiais locais como couro de veado, boi (ou outro animal) e
bambus. Enquanto na cidade a música de uma procissão passou a ser animada por
uma banda de música, nas comunidades do interior a música era cantada e tocada
pelos foliões. Esses grupos, além de participarem das procissões do santo
padroeiro, também realizam seu acompanhamento musical nas coletas de donativos
para a festa de padroeiro e também no levantamento e derrubada do mastro,
ocasião em que, em algumas comunidades, realiza a dramatização de um auto
chamado de “pretinhos”.
Ser folião é uma tradição que,
geralmente, passa de pai para filho. É uma função geralmente exercida por
homens, mas ultimamente algumas comunidades têm aceitado mulheres nesta
tradição. Recentemente, em algumas comunidades, tem solidificado a ideia de
salvaguardar essa cultura. Primeiramente no recolhimento das letras e das
melodias. E depois com uma gravação de algumas delas. Este fato registrou-se
mais recentemente em Alter do Chão. No entanto, em cada comunidade, existem
músicas ou melodias diferenciadas, algumas delas do conhecimento de um único e
idoso folião. Isso se faz urgente devido justamente a tradição de passagem de
pais para filhos. Alguns dos filhos não aceitam mais aprender o ensinamento dos
pais e muitos foliões antigos tem morrido levando consigo todo o aparato
cultural aprendido há séculos. É uma pena perder toda essa cultura. Mas, além
disso, pode-se também incentivar cada vez mais essas expressões, não somente
com a preservação, mas com o incentivo em manter vivo nas comunidades dos
cantores dos santos.
Continua...
NOTA: Na foto, grupo de foliões na comunidade de Surucuá, rio Tapajós - 2004.
Muito informativo o seu artigo.
ResponderExcluirParabéns!
Obrigado Júnior.
ExcluirA segunda parte já está publicada!