quinta-feira, 27 de abril de 2017

Artigo: Santarém e seus primórdios musicais (parte 01)

Por Pe. Sidney Augusto Canto

No ano de 2015, fui procurado por um grupo de alunos e professores da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA, que estavam atrás de dados sobre os primórdios históricos da arte musical em Santarém.



Sendo a música uma arte humana, podemos afirmar, sem nenhuma sombra de dúvida, que Santarém é uma terra de musicalidade tão antiga quanto a presença humana na foz do “Paraná-Pixuna” (o Rio Preto), que hoje conhecemos como Rio Tapajós. Os indígenas da foz do rio Tapajós, bem como outros povos que habitavam a região do Baixo-Amazonas e Tapajós, tinham uma cultura artística e rituais que outrora pareceram estranhos para os conquistadores espanhóis, franceses, ingleses e portugueses que para cá vieram nos séculos XVI e XVII. Infelizmente, pouco se registrou da música desses indígenas. O pouco que temos, entretanto, leva-nos a crer que eram povos ativamente musicais. Para ilustrar, vejamos a descrição feita por Maurício Heriarte sobre a vida cultural dos Tapajós:


Estando maduras as sementeiras, dá cada um a décima, e tudo junto o metem na casa em que tem os ídolos, dizendo que aquilo é Potaba de Aura, que na sua língua, é o nome do diabo; e deste milho fazem todas as semanas quantidade de vinho, e à 5ª feira de noite o levam em grandes vasilhas a uma eira, que detrás da sua aldeia tem muito limpa e asseada, no qual se ajuntam todos daquela nação, e com trombetas, e atabaques tristes e funestos, começam a tocar por espaço de uma hora até que vem um grandíssimo terremoto, que parece vem derrubando as árvores e os montes, e com ele vem o Diabo e se mete em um corro, que os índios tem feito para ele, e logo todos com a vinda do Diabo, começam a bailar e cantar na sua língua, e a beber vinho até que se acabe, e com isto os traz o Demônio enganados.

A música dos nossos antepassados indígenas era pautada pelo ritmo, daí a importância de tambores, maracás e outros instrumentos rítmicos na música indígena. Ao contrário da cultura ocidental, onde a melodia e harmonia aparentam ter muito mais importância, nossos indígenas seguiam ritmos compassados pelos pés, ou batuques, ou mesmo pelo som de instrumentos melódicos como flautas, trombetas e outros instrumentos de sopro rudimentares que eram importantes para a animação do ritmo.

A música indígena era de uso ritual. Estava presente no culto aos mortos, principalmente aos grandes antepassados, que, entre os tapajós, eram corpos mumificados, conhecidos como monhangaripes. Também era usada nos ritos de passagem (nascimento, puberdade, casamento, morte), bem como em outras cerimônias rituais, tais como a caça, a pesca, o plantio, além da guerra e da paz. A música se fazia necessária também nas cerimonias de pajelança, que não era simples curandeirismo, mas uma medicina natural e ao mesmo tempo espiritual de cura para o doente. O pajé conhecia músicas que espantavam os maus espíritos que podiam estar perturbando a paz corporal e espiritual do doente, essas músicas eram particulares e só podiam ser cantadas pelo pajé.

Quando os jesuítas e, posteriormente, os franciscanos chegaram em nossa região, ainda no século XVII, essa musicalidade natural dos indígenas foi aproveitada para fins de catequese. Um dos padres músicos, que foi missionário ente os tapajó, foi o padre jesuíta João Maria Gorzoni. Sabemos que, após visitar as Missões ao longo do rio Amazonas, na qualidade de Superior dos Missionários no Grão Pará, o Pe. João Felipe Bettendorff enviou o Padre João Maria Gorzoni, italiano de Mântua, para a Aldeia dos Tapajós. Foi esse sacerdote que edificou novamente a Missão, construindo residência e Igreja em taipa de pilão, mas coberta de palha. No campo artístico, o Padre Gorzoni foi mais longe, conforme diz o próprio Bettendorff em sua “Crônica”:

Com o atrativo da música, Padre João conseguiu reunir os garotos índios e não índios, que já se contavam por um bom número, em agradáveis festinhas religiosas e procissões (talvez o que depois se chamou “Sairé”) em que, levando a frente a imagem ou um quadro da Virgem Senhora Nossa, cantavam alternadamente: Tupã ci angaturama – Santa Maria Cristo Iara ou então o Caturetê Rosário (Bendito o Rosário) ao som das gaitinhas e tamborins fabricado pelos próprios índios.
Essas procissões, músicas e festas atraíram mais do que as palavras amigas do missionário que também os fazia cantar dentro da capelinha de pindoba, ajudando a missa e outras rezas. Alguns garotos já dedilhavam com bastante jeitinho as escalas da flauta e sabiam dar o seu recado...

A descrição acima, feito pelo padre fundador da Missão Religiosa entre os tapajós, é um relato bem antigo que nos informa da musicalidade tapajoara já envolto pela mesclagem cultural que permeia a Amazônia até os nossos dias. A música europeia, principalmente a música sacra, passou a ser conhecida pelos indígenas, bem como novos instrumentos, aqui introduzidos pelo colonizador. Se antes o instrumento sonoro básico era o de sopro, principalmente a flauta e a trombeta, logo os indígenas conheceriam os instrumentos de “corda” (popularmente conhecidos como rabecas).

Incontestavelmente, o maior resquício musical desse período missionário é o Sairé. Não o Sairé que existe hoje, mas o Sairé dançado e cantado na língua geral, entre nós conhecida como nheengatu. Algumas das letras e músicas foram resgatadas no final do século XIX, pelo botânico João Barbosa Rodrigues. Mais informações sobre o Sairé podem ser vistas no meu livro “Alter do Chão e Sairé: contribuição para a História (2014)”.

Outra tradição musical que vem do período missionário e que também passou a ser praticada pelos indígenas, são as folias. Ligadas à festa do santo padroeiro, e principalmente às festas do Divino Espírito Santo, que eram comuns nas Missões Religiosas, as folias são músicas tradicionalmente conhecidas pelo uso de voz humana, que dá a melodia de cantos religiosos, acompanhadas por instrumentos de percussão que sustentam o ritmo.

Esses grupos de foliões geralmente fazem seus próprios instrumentos: caixas, tambores, maracás e reque-reques de materiais locais como couro de veado, boi (ou outro animal) e bambus. Enquanto na cidade a música de uma procissão passou a ser animada por uma banda de música, nas comunidades do interior a música era cantada e tocada pelos foliões. Esses grupos, além de participarem das procissões do santo padroeiro, também realizam seu acompanhamento musical nas coletas de donativos para a festa de padroeiro e também no levantamento e derrubada do mastro, ocasião em que, em algumas comunidades, realiza a dramatização de um auto chamado de “pretinhos”.

Ser folião é uma tradição que, geralmente, passa de pai para filho. É uma função geralmente exercida por homens, mas ultimamente algumas comunidades têm aceitado mulheres nesta tradição. Recentemente, em algumas comunidades, tem solidificado a ideia de salvaguardar essa cultura. Primeiramente no recolhimento das letras e das melodias. E depois com uma gravação de algumas delas. Este fato registrou-se mais recentemente em Alter do Chão. No entanto, em cada comunidade, existem músicas ou melodias diferenciadas, algumas delas do conhecimento de um único e idoso folião. Isso se faz urgente devido justamente a tradição de passagem de pais para filhos. Alguns dos filhos não aceitam mais aprender o ensinamento dos pais e muitos foliões antigos tem morrido levando consigo todo o aparato cultural aprendido há séculos. É uma pena perder toda essa cultura. Mas, além disso, pode-se também incentivar cada vez mais essas expressões, não somente com a preservação, mas com o incentivo em manter vivo nas comunidades dos cantores dos santos.


Continua...

NOTA: Na foto, grupo de foliões na comunidade de Surucuá, rio Tapajós - 2004.

2 comentários: