terça-feira, 1 de agosto de 2017

Ecos da Rebelião de Óbidos – 1932


Para estas colunas, à guisa de informes a respeito da rebelião de Óbidos, sufocada violentamente no dia de São Bartolomeu, 24 de agosto do corrente ano, chefiada por Alderico Pompo de Oliveira [sic], fazemos a translação de uma entrevista concedida ao O Jornal, de Manaus, por um militar que tomou parte na expedição das forças legais.
Não cabem, no estreito espaço de que dispomos, as copiosas informações, cada qual mais interessante, publicadas pelos jornais da capital amazonense, sobre a aventura que durante quarenta minutos tingiu de sangue brasileiro as águas do “Mar Dulce”.
Eis a entrevista:

Quando daqui partimos já levávamos a nossa tropa disposta em forma de combate. No castelo de proa, estava localizada uma secção mista de metralhadoras, constituída por uma metralhadora pesada e por um fuzil-metralhadora, sob o comando do tenente Luiz Gentil. No poço de proa, entre o castelo e o passadiço do convés A, estavam postados 20 homens, às ordens desse mesmo oficial. No convés A, do lado de boreste, um contingente comandado pelo capitão Galvão, composto de elementos da Guarda Civil e de soldados da Comissão de Limites do Setor Norte, sob o comando do sargento Raimundo Nonato Chaves. No convés do lado de bombordo estavam dois contingentes, um sob o comando do bravo tenente Soter Tapajós Bentes e outro às ordens do tenente Zeno Ferreira. E à popa, uma esquadra reforçada, comandada pelo guarda civil de 1ª classe, Horácio Pinto Ribeiro. Além desses, muitos outros soldados faziam diversos serviços. O nosso efetivo total era de 169 homens assim distribuídos: Guarda Civil, 29 homens, comandados pelo capitão Galvão; contingente do tenente Soter, 34; contingente do tenente Gentil, 32; contingente do tenente Zeno, 25 da Guarda Civil e 31 do Exército; contingente da Comissão de Limites, 18. Distribuído o pessoal, o “Baependy” rumou para o Baixo Amazonas, rumo a Parintins, tendo tocado em Itacoatiara. Ao amanhecer do dia 24 de agosto divisamos a flotilha inimiga, composta dos vapores “Jaguaribe” e “Andirá”, das lanchas “Remo” e “Santa Cruz”; estas estavam fundeadas. Logo que fomos avistados, as unidades adversárias levantaram ancoras e formaram em linha de combate, com escalão desbordante para a direita, tendo como base o capitânia “Jaguaribe”. De acordo com as instruções recebidas, o comandante do “Baependy” determinou a volta desse paquete a fim de, incorporado ao “Ingá”, que já havia partido de Manaus, constituírem os dois a flotilha que teria de enfrentar o inimigo. Perseguidos pela artilharia dos rebeldes, contramarchamos passando por Itacoatiara, rio acima. O inimigo nos perseguia. Quando fomos alvejados pelos inimigos, abaixo daquela cidade, as nossas metralhadoras responderam ao ataque, durante alguns segundos. Felizmente, como o nosso vapor andasse muito mais, deixamos o “Jaguaribe” a longos metros de distância. Ao passar pelo porto de Itacoatiara, deixamos uma mensagem, dando instruções às tropas ali existentes. Por volta das 10 horas, encontramos com o “Ingá”. Retornamos, por isso, a Itacoatiara. Ia ter começo o grande combate. Era nosso propósito abater os navios rebeldes, pelo abalroamento, segundo os planos do capitão Lemos Bastos. Ao atingirmos a ponta do Catarro, reconhecemos a flotilha inimiga fundeada no porto daquela cidade. Ao ver que caminhávamos em sua direção, aprestaram-se os sediciosos para a luta. Aproximamo-nos dos navios adversários a toda força das máquinas, o “Ingá” atingiria o “Jaguaribe” e nós o “Andirá”. Mais alguns minutos de marcha e este pequeno vapor manobrava, ficando coberto pelo fogo do “Jaguaribe”. Já nesse momento a batalha tinha se iniciado. O tiroteio era ensurdecedor. O capitânia dos rebeldes iniciou o combate a tiros de canhão 75, enquanto a fuzilaria tomava vulto, de lado a lado. Nesse momento era de ver o espetáculo surpreendente que a luta oferecia, em todos os seus aspectos. As nossas metralhadoras varriam o inimigo, ajudada pelo fogo cerrado dos nossos fuzis. Os rebeldes respondiam ao ataque com ânimo resoluto, atirando, atirando sempre. Já o “Jaguaribe” havia sido abalroado e começava a soçobrar. Os nossos homens não se arreceavam do perigo, lutando com uma temeridade a toda prova. A nossa vitória, em grande parte, deve-se a ação das nossas metralhadoras. Foram elas que desbarataram o inimigo, ajudadas pelos soldados que atiravam de fuzil. Foi admirável a bravura do tenente Luiz Gentil. A metralhadora sob seu comando, colocada na barquinha do grande mastro de proa, despedia uma intensa fuzilaria contra os adversários, da mesma forma que a peça pesada, dirigida por esse mesmo oficial, localizada na proa do “Baependy” e exposta a todos os fogos inimigos, metralhou incessantemente os rebeldes. Enquanto isso, outros contingentes guarneciam a amurada de boreste, lado em que se realizou quase todo o combate. Com as ordens transmitidas aos soldados pelo chefe das operações, batemos rudemente o passadiço, a casa das máquinas, as peças de artilharia, o convés e todas as dependências do “Jaguaribe”, com o fito de auxiliar a missão do “Ingá”, que visava abalroá-lo. Deve-se à fuzilaria do nosso vapor, em grande parte, o sucesso do nosso triunfo, que redundou no afundamento do vapor da Comércio e Navegação, transformado em navio de guerra pelos sediciosos de Óbidos. Foi ela que desguarneceu as peças do inimigo e contribuiu, de forma poderosa, para que os canhões de boreste do adversário fossem imprecisos. Ainda à nossa fuzilaria deve-se o emudecimento da artilharia dos revoltosos, sendo de justiça salientar que, para isso, muito contribuiu a bravura e o desprendimento do tenente Gentil, que nos momentos mais difíceis não abandonou as suas metralhadoras, expondo-se às balas dos nossos antagonistas, principalmente no momento em que a metralhadora pesada do “Ingá”, colocada na proa dessa unidade, entre o castelo e o passadiço, entravou, deixando de atirar. Posto a pique o “Jaguaribe”, e já este vapor submerso, deu-se a explosão de suas caldeiras. Foi um espetáculo horroroso. Então, iniciamos o nosso combate contra o “Andirá”, que nos hostilizava acintosamente a tiros de fuzil. Tendo-se desviado esse vapor da manobra que dizemos para atingi-lo, a sua gente metralhou-nos com violência inaudita e com a mais indômita coragem. A sua força combatia tenazmente, e seria injustiça obscurecer o valor e o denodo com que se bateram até aos derradeiros momentos. Desde que iniciamos o combate até que conseguimos alcança-lo para o pôr a pique, a força que viajava nesse vapor da Amazon River lutou heroicamente, atirando incessantemente contra nós, e a prova do que eu digo são os estragos produzidos no casco, na escada, no corrimão e nas obras mortas do “Baependy”, que se encontraram crivadas das balas inimigas. Durante mais de 40 minutos combateu-se galhardamente de lado a lado. Não fosse, esta é a verdade, a metralhadora sob comando do tenente Gentil, que destruiu a ponte de comando do “Andirá”, desbaratando os que os dirigiam, talvez tivéssemos tido muitas mortes a lamentar. Esse vapor, já depois de abalroado, ainda nos hostilizava com os seus tiros e já a adernar, ainda éramos atingidos pelas suas balas. Devemos fazer justiça a quem merece. Os rebeldes do “Andirá” bateram-se com mais persistência e tenacidade do que os do “Jaguaribe”, que abandonaram o navio logo após o choque. Os nossos soldados portaram-se bravamente, lutando com um destemor a toda prova. Enquanto assim procedia o destacamento, os oficiais e inferiores davam um grande exemplo de coragem e de bravura indómita, animando os seus comandados. Por várias vezes vi, em pé, no castelo de proa, o tenente Gentil, indiferente à intensa fuzilaria inimiga, a dirigir os serviços de metralhadoras, da mesma forma que o capitão Jonathas Corrêa, alheio aos perigos inevitáveis da luta, a dirigir a tropa, de um lado para outro, dando ordens, tomando providências, com um destemor a toda prova. Todos, enfim, portaram-se admiravelmente, com um extraordinário desprendimento pela vida. Tratava-se de defender, ali, a tranquilidade da população de Manaus, que estava ameaçada de violências inomináveis, que culminariam pelo saque e pela falta de liberdade e de respeito às nossas famílias. A vitória das nossas forças foi brilhante. É de lamentar, apenas, que tivesse sido entre irmãos, que se tivessem perdido tantas vidas preciosas numa luta que se teve o característico dos grandes feitos heroicos, não deixa de ser lamentável, sob todos os pontos de vista”.


NOTA: Publicado no jornal O Acre, edição 153 de 1932.

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