Por Pe. Sidney Augusto Canto
Até os idos de 1835, os
enterramentos dos defuntos eram realizados dentro da Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição (antes de 1754, esses enterros eram feitos em outras duas
igrejas, a dos Jesuítas – que se localizada na atual Praça Rodrigues dos
Santos, e na capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso – localizada na Fortaleza).
Foi por iniciativa do Padre
João Antônio Fernandes, vigário da Vila de Santarém, que se começaram os
sepultamentos em um outro “campo santo”, localizado em área afastada do centro
urbano e fora das Igrejas. Já na época da Cabanagem, os corpos a serem
sepultados eram tantos que já não seria prático sepultar todos os mortos no
interior da Igreja Matriz. Pe. João Fernandes, teve então a ideia, a bem da
saúde pública da cidade, de sepultar os mortos em um terreno afastado da Vila.
Ali plantou um cruzeiro, abençoou o solo e deu início ao que hoje é o cemitério
de Nossa Senhora dos Mártires.
Na década posterior, o
cemitério passou à administração pública. No entanto, os católicos tradicionais
da cidade, continuavam com o costume de fazer enterramentos dentro da Igreja. O
governo provincial, através do crescente apelo dos primeiros médicos que
começaram a trabalhar na província, proibiu os enterramentos nas Igrejas e
passou a autorizar que os mesmos fossem feitos somente em cemitérios afastados
do centro urbano das vilas e cidades do Grão Pará. Foi assim que, em Belém,
abriu-se o cemitério da Soledade. Em Santarém, o campo santo passou a ser
chamado de Cemitério Nossa Senhora dos Mártires (talvez uma justa homenagem aos
mártires da Revolta Cabana).
Em idos de 1855, uma epidemia
de "colera morbus" infectou a população da recém-criada cidade de
Santarém e outros municípios vizinhos. O medo de contaminação da doença, agora
vinha, principalmente, da parte das pessoas mais letradas, que questionavam
seriamente o fato de ficarem rezando perto (na verdade, em cima) dos túmulos
dos recém-falecidos da "peste", principalmente durante os atos
religiosos. Isso desencadeou uma campanha pela utilização do "Novo Campo
Santo" mais afastado das residências "dos vivos".
O Cemitério Nossa Senhora dos
Mártires recebeu os muitos falecidos da "peste". A maioria deles eram
recolhidos numa carroça, trabalho realizado pelo Padre João Antônio Fernandes,
que levava os defuntos para enterrá-los naquele local "fora dos limites da
cidade" (nesta mesma época, em Vila Franca, o pároco Padre Antônio do
Espírito Santo Fonseca, socorria seus paroquianos organizando um modesto
ambulatório e mandou abrir, a suas expensas um novo cemitério que ainda hoje é
utilizado, pois o antigo, que ficava mais próximo da Igreja, se encheu
rapidamente e não suportava mais mortos).
Não demorou muito para que o
Cemitério Nossa Senhora dos Mártires ficasse cheio de sepulturas. Os corpos
eram tantos, e sepultados em covas tão rasas, que na sessão da Câmara
Municipal, de 25 de agosto de 1855, foi apresentada a seguinte INDICAÇÃO:
“Senhores, não nos é estranho que muitos ou talvez a máxima parte dos
corpos das vítimas da terrível epidemia do – Cholera – foram enterrados em
pouca profundidade e suas sepulturas mal socadas; deste mal enterramento devido
as circunstâncias em que nos colocou esse flagelo da humanidade pode porvir
outro talvez pior, logo que apareçam algumas chuvas capazes de abater essas
sepulturas e fazer desenvolver e exalar os miasmas desses corpos que
necessariamente serão trazidos para cima da Cidade, pelos ventos terrais que
todas as noites nos sopram por cima do Cemitério, e com eles desenvolver-se uma
nova epidemia. Para prevenir, pois, esse mal que com justa razão devemos
receiar (sic), indico que com a precisa urgência a Câmara faça socar as
sepulturas, e depois aterrar todo o Cemitério com mais dois ou três palmos de
terra igualmente bem socada. Por esse mesmo motivo indico mais que se proíba o
enterramento no Cemitério de que trato por determinado tempo nunca menos de um
ano. Santarém, 25 de Agosto de 1855. Antonio de Oliveira da Paz, vereador
suplente”.
As sessões seguintes aprovaram
a que fosse feito o aterramento e socamento de terra sobre as sepulturas, além
de aprovar a compra de um terreno próximo ao “Laguinho”, além do Curro
Municipal, para que fosse feito ali um novo cemitério. Obra que chegou a ser
feita, apesar de o governo provincial ter embargado a ideia, por meio do médico
da Província que afirmou que esse novo cemitério poderia trazer mais problemas
para a saúde pública. Não demorou muito esta necrópole, o naturalista João
Barbosa Rodrigues chegou a vê-la em 1872, junto ao referido Laguinho. Encontrou
esse cemitério abandonado, composto de um cruzeiro e algumas sepulturas “coberta de tijolos, guardando os restos dos
coléricos”.
Passado o temor da cólera, foi construída
a “Capela de Nossa Senhora dos
Mártires”, com recursos oriundos do poder público que destinava verba para tais
construções em idos da década de 1870. Alguns atribuem ao padre Monsenhor José
Gregório Coelho a iniciativa da construção, inclusive uma história circulante
na cidade, dá conta que o Altar de Mármore da Matriz de Nossa Senhora da
Conceição era, na verdade, destinado para a Capela do Cemitério de Nossa
Senhora dos Mártires, mas, como este era grande para as proporções modestas da
Capela, Mons. José Gregório optou por montá-lo na Matriz, substituindo o antigo
altar-mor da padroeira que era feito em madeira.
A linha arquitetônica da Capela
é bem simples para os padrões da época, haja vista que a existência das capelas
mortuárias não era para a realização de velórios (costume que, ainda hoje
mantido, era feito nas residências, de onde posteriormente o corpo era levado
para a Matriz, onde se realizavam as cerimônias fúnebres antes do enterro).
Assim, a Capela era usada mais para uma breve "passagem do falecido",
quando acontecia a realização de algumas orações, antes do enterro. Uso pomposo
da Capela do Cemitério era feito por ocasião do dia de Finados onde se
realizavam as celebrações em intenções dos mortos.
Hoje desprovida de sua beleza
original, a Capela tem em anexo uma construção recente com salas para depósito
e administração do Cemitério. Mas, durante muitos anos, o interior da capela
abrigou uma obra de arte de grande valor histórico. Trata-se de uma imagem de
Cristo Crucificado, entalhado em madeira no ano de 1745, que possivelmente
fazia parte do acervo da Igreja Matriz e fora levado para lá por ocasião da
inauguração da Capela. Esta obra de arte encontra-se atualmente no acervo do
Museu de História e Arte Sacra da Diocese de Santarém.
Ao redor da capela se encontram
os túmulos mais antigos do Cemitério. Alguns deles de mármore importado da
Europa, outros fabricados em Belém, outros mais simples, retratam o contraste
existente na sociedade local da época, aonde, quanto maior as posses, mais
suntuoso deveria ser o jazigo.
Entre os mais antigos, que se
pode observar desses túmulos, é o do Padre Raimundo Antônio Fernandes (irmão do
Padre João Fernandes) que faleceu em Santarém no dia 06 de agosto de 1864. Seu
irmão, Padre João, fundador do Cemitério, também está sepultado naquele Campo
Santo mas em sepultura e lugar desconhecidos. Quando eu ainda era seminarista
tentei localizar tal sepultura. Há uma, sem lápide e muito simples, que as
pessoas antigas diziam ser a de um padre. Não constava nome e não está muito
longe da do Padre Raimundo. Quem sabe pode até ser esta, visto que Padre João
era homem simples e não tinha amigos ricos (morava com os índios do bairro da
Aldeia) que lhe construíssem um Mausoléu.
Um fato interessante, ligado à existência
do Cemitério e da Capela é a realização da "Procissão dos Ossos".
Realizada por confraria religiosa masculina existente na Santarém do século
XIX, essa procissão noturna acontecia na véspera do dia de Finados. Alguns
homens encapuzados se reuniam em frente da Matriz e seguiam para a Capela do
Cemitério de Nossa Senhora dos Mártires, no caminho, paravam em algumas casas e
faziam orações pelas almas dos falecidos. Diz uma lenda, contada pelos antigos,
que as velas que levavam tinham que ficar queimando no altar da Capela do
Cemitério, se alguma delas fosse levada para casa, se transformaria em osso de
defunto.
Em 1919 o cemitério já era
demasiado pequeno para a realização de sepultamentos. Nesse ano, era Intendente
Municipal o Dr. Manoel Waldomiro Rodrigues dos Santos. Foi ele que, a 7 de
janeiro de 1919, por meio da Lei Nº 651, mandou dar o nome de “Mendonça
Furtado” para a nova Avenida que se abria na cidade (que até então ia às
alturas da São Sebastião). Nesse mesmo ano, o mesmo Intendente sancionou a Lei
Nº 665, de 27 de novembro de 1919, que aprovava a construção de um novo
cemitério, que tinha o seguinte teor:
“Art. 1º. – Fica aprovado o ato do Intendente do Município, mandando
abrir um novo Cemitério, nesta cidade, na área compreendida entre as travessas
15 de Agosto e Barão do Rio Branco, com frente para a avenida Mendonça Furtado,
cujas obras começaram em primeiro de agosto último; podendo abrir o necessário
crédito para levar a efeito a construção da nova necrópole.
§
Único – Logo que fique concluído o Cemitério, não se fará enterramento no atual
de Nossa Senhora dos Mártires, ficando para esse fim, exclusivamente destinado
o novo.
Art.
2º. – Revogam-se as disposições em contrário.”
Não sabemos por qual motivo a
população não acatou a abertura da nova Avenida, pois simplesmente os falecidos
foram sendo sepultadas no terreno, até então continuo do antigo cemitério, que
agora se estendia por mais um quarteirão. A avenida era interrompida por várias
sepulturas novas que iam sendo feitas na parte dos fundos do Cemitério Nossa
Senhora dos Mártires. Em fins da década de 1940, o prefeito Aderbal Tapajós
Caetano Correa decidiu fazer a Avenida Mendonça Furtado cortar o terreno do
então único cemitério de Santarém, dividindo-o em dois, e fazendo, assim, valer
a Lei de criação de um novo Cemitério para Santarém.
Apesar dos protestos de algumas
famílias que tiveram que remanejar a sepultura dos seus mortos (outros
continuam sepultados embaixo da rua até os dias de hoje), o poder público abriu
a avenida e inaugurou, em 19 de dezembro de 1949, o Cemitério de São João
Batista. E quanto aos enterros no Cemitério Nossa Senhora dos Mártires? Bem,
estes continuam acontecendo, apesar de proibidos por quase um século, até os
dias de hoje. Todos os cemitérios da cidade estão acima da sua capacidade.
Algum dia (espero que antes de minha partida deste mundo) espero fazer um
complemento a esta crônica, falando do novo (e tão necessário) cemitério da
nossa querida Pérola do Tapajós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário