quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

ARTIGO: O Círio da Conceição em Santarém


Por Pe. Edilberto Sena

O Círio, ao que parece, é um dos regionalismos populares do Norte. É uma festa. Nem sei mesmo se o que sobressai seja a fé do povo simples, se o folclore ou se o desfile de assim ditos "líderes do povo". Há um pouco de tudo isso.
É um dia em que o povo sofredor para (não digo que esquece) sua via sacra da vida, deixa de pensar por uns momentos na carne que não pode mais comprar, no café e açúcar que lhes sangra o bolso magro e vai à rua com sua Santa no andor. Não tem vergonha de cantar e rezar nas ruas, vai alegre na certeza de que Santarém é da Conceição.

O Círio marca o início da festa, a maior festa do Baixo Amazonas. Há aí o sentido religioso visível. A religião por muitos anos, foi usada para atender os interesses da classe dominante e exploradora dos pobres. Durante o ano o trabalho suado do pobre produzindo a farinha, cujo lucro fica com os grandes, pescando o peixe para alimentar as madames, cuidando do gado - do patrão - e assim por diante. A Igreja é o lugar onde todos "são irmãos" com o mesmo pai. A festa da padroeira "irmana" todos. O patrão dá o mamote para a Santa, o pobre dá o maço de vela, todos cantam e rezam numa quase pantomina religiosa. O povo alimenta sua fé, na padroeira, no Deus Todo Poderoso. Agradece a vida, a cura de uma doença, a bondade dos vizinhos. O grande se diverte. Também ele tem fé. Agradece a Deus a rentabilidade de seu capital, os bezerros ferrados, a prosperidade do seu comércio.
Antigamente o Círio ainda disfarçava essa diferença social, era todo mundo caminhando misturado com sua Santa. Hoje, não, sofisticaram o ato. Há uma corda de isolamento fora vai o povo, a massa da via sacra. Dentro dos isolamentos protegidos "pela Santa" vão as pessoas "de liderança", “os soldados vêm manter a ordem”, servir de proteção a quem?
Assim é o Círio hoje. Um dia vai mudar. Deixará de ser a festa da ilusão para ser a festa da libertação. Um dia não haverá mais diferença de ofertas (velas x mamote) nem diferença de ação de graças (vida x lucro) será a festa verdadeira do povo, um só povo sem desigualdade, sem grandes e pequenos.
A religião pouco a pouco vai deixar de ser o guarda-chuva de uma situação social desigual. O Pai Nosso será rezado por aqueles que realmente têm Deus como Pai comum e, portanto, respeita os irmãos na terra. Um dia, um dia!!!

NOTA: Texto publicado originalmente no Jornal do Baixo Amazonas de 26 de novembro de 1978. Naquela época o autor ainda era pertencente à Ordem dos Frades Menores, hoje é padre Diocesano.

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