segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Descrição de um viajante: Óbidos em 1914

A descrição abaixo foi feita por Manuel Buarque, em Belém, no ano de 1914 e publicada em “O Estado do Pará” de 10 de março daquele ano. Oferece um retrato da Cidade Presépio do Baixo Amazonas no início do século passado. Deve-se, no entanto fazer algumas correções históricas ao texto daquela época.


Na garganta do Amazonas, à sua margem direita, sobre um terreno muito acidentado, está edificada a cidade de Óbidos, antiga Vila dos Pauxis, cujo nome conservara até 2 de outubro de 1854, época em que foi elevada à categoria de cidade.
Divide-se em cidade alta e cidade baixa; sendo que, nesta última, é onde se acha toda a sua importante vida comercial; e, naquela, a vida militar, porque Óbidos é uma cidade forte. É ponto obrigatório de passagem de vapores, que perambulam pela Amazônia. Possui a melhor ponte de desembarque do interior deste Estado, benefício inestimável que lhe prestara o dr. João Coelho, quando Governador do Pará.
Sede de comarca e de município, Óbidos é a fortaleza da Amazônia, e pode, por si só, fazer face à invasão estrangeira nessas regiões, onde se encerram os mais ricos tesouros da natureza, no Novo Mundo. Tem um ótimo quartel federal, uma importante Mesa de Rendas Federais, confortáveis prédios particulares, boa Intendência, esplêndida matriz, um cemitério muito bem tratado, estação telegráfica, uma esplêndida casa de residência dos frades franciscanos. E, mau grado, ser uma terra habitada por militares, reina ali sempre a paz, devido aos comandantes da guarnição que são homens de educação e cultura e que bem sabem com os seus oficiais pesarem a responsabilidade do cargo que exercem. As lutas que conheço nesta cidade paraense, são lutas políticas, lutas verbais: e “palavras não arranham pedras”. A Prelatura de Santarém, que tem sido um dos mais fortes, mais poderosos elementos de progresso no Baixo Amazonas, tem nesta cidade um Colégio de meninas, regido pelas Irmãs de Santa Clara, e uma escola de meninos, regida pelos franciscanos, que tem prestado muitos bons serviços aos obidenses, porque os frades menores são verdadeiros agricultores da alma, e bebem nas regras que lhes foram deixadas pelo grande Patriarca de Assis, o verdadeiro método de educação das crianças; incutindo-lhes no espírito o amor de Deus, que é o princípio da sabedoria, e o amor do próximo, que é a morte do egoísmo humano.
Tem Óbidos um Grupo Escolar que funciona em um ótimo prédio, mas contra cuja existência me insurgirei sempre em qualquer lugar em que seja adotado este meio de dissimular a instrução, porque a promiscuidade de sexo é uma fomentação da imoralidade: “o homem é a palha, a mulher é o fogo, o diabo sopra e o incêndio é certo”. Se em Óbidos não há incêndios desta natureza, infelizmente, em outros lugares, ou melhor, em alguns grupos, tem fumegado as labaredas de tão tétrico meio de proclamar-se a liberdade fatal da concupiscência da carne. O clima da cidade é sadio e a sua população pode ser computada em 2.500 habitantes. O município é rico: produz o cacau, a castanha; o comércio é importante e a indústria pastoril cresce dia a dia. No rio Trombetas encontram-se os mais ricos castanhais do Estado; e, segundo rezam as crônicas dos Jesuítas, nos tempos coloniais, possui grandes jazidas de ouro, até agora completamente inexploradas.
Segundo o autor das “Viagens no Sertão do Amazonas”, o primeiro homem civilizado que procurou conquistar os índios “araras”, que habitavam essa região, foi João Mendes, cujos pais foram devorados pelos selvagens e ele obrigado a banquetear-se com as suas carnes. Era, então, criança João Mendes, que fora submetido ao martírio da tatuagem em todo o corpo, e a cara coberta de riscos azuis para ser distinguido dos selvagens que o educaram nos seus usos e costumes.
Havendo, porém, os “araras” tido um combate renhido com os “mundurucus” e sido vencidos, Mendes, preso pelos vencedores foi, depois, constituído o seu chefe, vigando-se depois, cruelmente, da morte bárbara que aqueles fizeram sofrer aos seus pais. Em 1825, Mendes foi visitar o Presidente da Província, em Belém, e este conferiu-lhe as honras de “capitão dos mundurucus”: e, voltando depois a Pauxis foi recebido pelos seus “súditos”, como um verdadeiro monarca. Mendes nunca abandonou a vida selvagem, vivendo trinta anos com os “mundurucus”, aproximando-se dos jesuítas, dos quais receberam os influxos benefícios da religião do Crucificado. Faleceu este Robinson de nossas selvas aos 36 anos de idade, sendo a sua morte lamentada por todos que o conheceram, quer entre as hordas selvagens que dominava, quer entre os mensageiros da fé que espalharam o germe fecundo da civilização cristã no seio das civilizações selvagens do Novo Mundo.
Devido a sua posição estratégica, sempre se pensou, no Brasil, de fazer-se de Óbidos uma cidade forte: em 1854, ali construiu-se uma fortaleza mascarada, que mal se divisava do Rio Mar, por achar-se escondida por entre arvoredos densos.
Hoje possui duas fortalezas, que bem podem manter os direitos brasileiros, na Amazônia, quando algum estrangeiro ousado procure, levado pela cobiça, profanar o solo sagrado da Terra de Santa Cruz. Sentinela avançada, postada à margem do Amazonas, respira-se em Óbidos uma atmosfera de paz e de segurança dos nossos direitos nacionais, que jamais respira-se em qualquer outra localidade da Amazônia!”.


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