Óbidos tem grandes e ilustres filhos.
Entre alguns que se destacam na galeria nacional, encontra-se José Veríssimo de
Matos, crítico literário, fundador da Academia Brasileira de Letras e profundo
conhecedor da cultura amazônica, inclusive dominando o conhecimento da língua
geral amazônica, conhecida como nheengatu. Entre abril e maio de 1877, José
Veríssimo publicou a narrativa de uma viagem a Óbidos, que ele realizou no
início daquele mesmo ano, em forma de folhetim, no Jornal “Liberal do Pará”, do
qual extraímos a seguinte descrição da cidade que lhe serviu de berço:
“Óbidos
chamou-se primitivamente a aldeia dos Pauxis.
Este nome é indígena. Até hoje acreditei ser ele pertencente à língua geral ou
tupi e corruptela do vocábulo ypauauichy
– que traduz por lago de uychy – ypaua, lago em tupi – pois é certo que
o lago situado atrás da cidade abundou outrora em árvore desse fruto. Agora uma
nova versão se apresenta e com tanto cunho de verdade e certeza como esta.
Conta
uma tapuia da tribo dos Encarinãs,
do Trombetas, que aqui se acha, o seguinte: Era na época dos pesqueiros reais.
Um desses pesqueiros estava estabelecido no lago ou rio Paru, onde fizeram uma
grande tapagem. Os matupás,
verdadeiras ilhas flutuantes de capim, ameaçavam, descendo o rio, destruir a
paliçada. Os que dirigiam e usufruíam o pesqueiro obrigavam os índios, seus
pescadores, a saltarem na água a fim de desviar ou encostar as ilhas de capim,
livrando assim a tapagem de ser derrubada. Eles obedeciam, porém eram vítimas
das cobras, jacarés, piranhas e outros animais que soem acompanhar sempre essas
ilhas. Irritados abandonaram os encarinãs
o Paru e vieram estabelecer-se, se é que se pode empregar esta palavra falando
de nômades, no local, ou antes, às margens do lago que fica ao N. da cidade.
Eram, nesse lugar, tão abundantes os mutuns, que lhe deram o nome desse pássaro
no dialeto encarinã chamado pauici.
Eis
o que conta a jovem índia: tradição guardada na sua tribo e chegada até ela.
Foram
estes selvagens os que, chamados por Manuel da Mota e Siqueira, o foram ajudar
a levantar a fortificação que pelo Capitão-General Antônio de Albuquerque
Coelho de Carvalho, foi incumbido de erguer nesta paragem do Amazonas, ponto
dos melhores para construção dessa ordem, por ser o mais estreito dele. Esse
primeiro forte subsistiu por longo tempo até que desapareceu, sendo em seu
lugar construído, em 1854, o atual. O Capitão-General Francisco Xavier de
Mendonça Furtado elevou em 1758 a aldeia dos Pauici à vila, com o nome de Óbidos. Ainda não há muitos anos os
velhos da terra não diziam obidenses e sim – pauxiuaras – querendo designar os filhos do lugar.
Em
1854 foi Óbidos feita cidade. Apesar dos seus noventa e seis anos de vila e
vinte e três de cidade, o que perfaz uma idade de cento e dezenove anos, não se
contando o tempo de aldeia (que foi como o que mamou), Óbidos não apresenta o
progresso que era de esperar, visto a magnífica posição que ocupa. É como essas
mulheres velhas a quem, apesar de avançada idade, falta a sabedoria da vida e
experiência e caem nos mesmos erros da mocidade.
Óbidos
está assente sobre uma colina à margem esquerda do Amazonas, justamente no
passo mais apertado deste rio, a oito milhas, pouco mais ou menos, da
embocadura do Trombetas, e não nela como mentem as geografias oficiais.
Essa
colina toma nascimento á margem direita de um ribeiro que fica a E. da cidade,
conhecido pelo nome genérico de igarapé
palavra indígena que significa caminho de canoa; e vai-se elevando quase
insensivelmente ate o alto chamado do Bom Jesus – seu ponto culminante. Alguns
cortes foram nelas feitos para servirem de ruas que levassem ao porto, deixando
isolados dois ou três cabeços, em um dos quais está o forte.
A
sua altura geral será de 100 metros acima do nível comum das águas, o que
concorre para fazer de Óbidos uma das mais aprazíveis e salubres localidades da
região amazônica. As duas serras do Escama e do Curuçambá, a primeira a E.
prolongando-se para o N. ; a segunda ao N., mas afastada, ajudam a aformosear a
cidade.
A
sua fortaleza é bem edificada. Monta 10 peças: 6 de 80 e 4 de 32. É de alguma
sorte inútil, porque só domina o rio do meio para a margem fronteira, o que
nada vale, pois os navios de maior calado podem passar-lhe por baixo, livres de
todo o perigo e quase sem serem avistados. Para remover este inconveniente fez
o governo construir um fortim, com forma de um pentágono, montando três peças,
cujas balas podem varrer a flor d’água.
A
matriz é um templo espaçoso e interiormente bem acabado. O exterior, porém,
está por concluir, apesar dos seus setenta anos, faltando-lhe as torres, o que
torna-lhe o conjunto desagradável. Hoje está pintada de novo, porém tão grotescamente
pintada, de branco e vermelhão, que não pode lisonjear o bom gosto dos mestres
obidenses.
Possui
esta igreja uma coleção de quadros da Paixão de mérito real e que aqui se estão
estragando na poeira da sacristia. Todos eles revelam o mesmo pincel que, por
vezes, lhe dá uns tons que são o segredo dos mestres.
Em
frente à igreja matriz está a cadeia pública, edifício exteriormente bom e
espaçoso e no interior péssimo, como infelizmente são todos os edifícios desse
gênero no interior.
A
casa da câmara municipal, à rua do Bacuri – uma das mais antigas da cidade – é
das melhores que visto na província. É grande, construída no gosto moderno. Com
um ático que lhe encobre o telhado e entrada nobre. O tribunal do júri aí tem
suas sessões em uma sala bastante vasta, podendo conter de 80 a 100 pessoas.
Perdem-se ai os outros cômodos, sem haver um vereador que se lembre (o tempo é
pouco para fazer eleições e mais algumas coisas) que uma biblioteca popular,
pequena e boa, podia ocupar um deles. Será, pois certa o que alguém disse
algures: A maior inimiga da instrução é a ignorância?
Falando
da casa da municipalidade, não posso deixar de fazer duas censuras a esta.
Mesmo em frente à casa de suas sessões consente a ilustríssima um curral de
bois, de onde se exalam miasmas que podem comprometer a saúde pública. Outro
motivo de censura é o lastimável estado de desasseio em que traz a cidade. Bem
sei que isto de falar-se do desasseio das cidades do Brasil é uma velharia:
todos os viajantes falam dele, mas... não se argumenta com abusos.
O
cemitério fica situado a O., convenientemente afastado, da cidade. Cumpre aqui
reparar uma injustiça que cometi na – Visita a Monte Alegre. O cemitério de
Óbidos, quando aqui estive ultimamente, vai por dois anos, era um simples
campo, sem cerca de nenhuma espécie que vedasse a entrada aos animais; hoje,
porém, é um dos melhores do interior. É todo amurado, tendo a frente de meio
muro e grades de ferro com um elegante portão de gradil de ferro, obra do
artista do lugar. Reparada a injustiça, convém chamar a atenção de quem
competir para o estado lastimoso do seu interior, onde crescem as ervas a ponto
de sumir os túmulos.
No
alto do Bom Jesus, em feliz situação, está situada a capela desse nome. É
belíssimo o panorama que daí se descortina. Esta capela é devida a uma promessa
feita pelos moradores do lugar, em outras eras.
A
cabanagem – essa embriaguez de uma raça – devastava então estes lugares. Os
seus habitantes prometeram erigir uma capela sob a invocação do Bom Jesus se
vissem-se livres dos flagelos dessa guerra fratricida. Não chegaram a concluir
a capela, deixando apenas o arcabouço, acabado nestes últimos anos. Faz-se aí
uma festa de arraial muito concorrida e brilhante, a que a vaidade bairrista
dos obidenses chama uma Nazaré pequena.
Óbidos
tem também um pequeno teatro, e pelas saudades que do tempo em que funcionava
têm as habitantes daqui, muito belas noites deveram ter-se ai passado.
A
cidade tem de 800 a 1.000 habitantes e 200 a 300 casas. É iluminada a
querosene... Exceto nas noites de luar e em algumas escuras.
Uma
das feições do caráter do povo paraense é o desapego ao confortável. Quem viaja
no interior da província nota sempre o mau gosto da construção das casas, sem
nenhuma comodidade. Se nelas entrar em muito poucas encontrará uma mobília, um
móvel que revele amor ao luxo, um aparelho completo à mesa, embora haja mais
peças do que as do costume, mas essas de diferentes feitios. Isto é geral. Não
sei se posso atribuir isso à influencia dos indígenas – que se fez sentir grandemente
sobre esta província. Eles, selvagens e nômades, não sabiam o valor do conforto
e comodidades (...)”.
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