domingo, 24 de maio de 2020

Uma carta procedente de Fordlândia em 1930


COMPANHEIRO – Recebi tua carta.
Felizmente estou bem, ganhando a boia e 6.000 réis de jorua.
Todos os dias peço a Deus que se compadeça de mim, porque se adoecer, nada ganharei e, o hospital daqui é o terror dos vivos. Os médicos são bons, mas se confiam muito nos enfermeiros.
E ainda mais que, apesar da Companhia manter uma secção de saneamento, ultimamente tem aparecido diversos casos de beri-beri; e dizem que tal doença era, até então, desconhecida nesta zona. Afirmam os experientes que é o efeito do arroz mal cozido e distribuído na alimentação do pessoal.

Eu compreendo também que as dormidas expostas, como são aqui às chuvas, frio e vento muito prejudicam a saúde e contribuirão talvez para que surjam tais doenças. Pela extirpação feita da mata, é muito provável o solo, que vai ficando a descoberto tão de assalto, exalar qualquer ar maléfico que contamina o ambiente local. Por isso acredito que se fossemos mais abrigados durante a noite, talvez estivéssemos menos sujeitos a essas anormalidades de clima.
Em relação à ordem moral, com a permanência do coronel Guedes, é simplesmente exemplar.
Enquanto ao lado administrativo, nada entendo, mas se o Henri Ford chegasse por aqui disfarçado seria bem capaz de ficar vermelho. Há tantos chefes e... cada pedaço de porta!!!...
Os estrangeiros mais simpáticos aqui pelos nossos patrícios são os americanos. Cultivam mais a polidez e são mais humanitários que os outros.
Atualmente só existem aqui dois; os mais chefões são de nacionalidades diversas e alguns deles, egoístas pra burro.
Eu cheguei aqui bancando almofadinha e com uma carta de recomendação em ordem e de muito valor político; por isso mesmo ainda estou chiando no machado grande e já bem habilitado no manejo do bruto.
Os recreios para nós aqui são fora do terreno da Companhia: - Cassipá e Tabocal. Porém prejudicam muito, tanto a Companhia, como aos bestas que lá se entregam às explorações.
Sem mais, abraços do companheiro velho.
JOSÉ.
12 de março de 1930.

NOTA: Texto extraído do jornal “A Cidade” de 22 de março de 1930.

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