segunda-feira, 23 de março de 2020

Momento Poético: Carta


Por Rui Guilherme Barata

Chico, não é o poema que me traz aqui neste momento.
Não é o poema, Chico, é este cansaço, este medo de ter tantos caminhos,
Tantos e tão poucos satisfazem.

Não é o poema, Chico, é este desejo de contigo sair por estas velhas ruas,
Velhas ruas onde há muito envelhecemos,
Porque – sabes, Chico? – vazio é o nosso olhar de todas as promessas
E nossas almas teem para mais de mil e tantos anos.

Vamos, Chico, não me negues a graça da presença.
Se eu te pedir a lua, por favor, vai correndo buscar,
Se eu te pedir a estrela, manda a empregada comprar,
Se eu desejar a morte. – Por que me fazer esperar?


Vamos, Chico, toma o teu anjo e vem, que este cansaço
É tão grande, é tão triste, é tão pesado,
Maior que a solidão, maior que o mundo,
Muito maior que o tédio e que o pecado.

Vamos, Chico, esta noite floresce na legenda que é tua
Ninguém estranhará se nos beijarmos,
Ninguém gargalhará se então chorarmos
Como dois bêbados que se encontram na rua.

Vamos, Chico, leva-me nas asas do teu anjo,
Leva-me do riso, arrasta-me do pranto,
Pois loucura maior é impossível esperar
Estas horas longas, estas longas horas
E que jamais, jamais podemos parar.

Vamos, Chico, muito temos que andar
Nosso rumo é o cemitério
Onde quero descansar.
Plantaremos nossas flores,
Pintaremos nossa cruz,
Abriremos nossa cova
E depois – pela madrugada –
Quase mortos de cansaço,
Deitaremos calmamente
À espera do milagre.

Vamos, Chico, dá-me o teu braço que eu estou cheio de pecados,
Dá-me o teu ombro que este nojo é bem maior,
E orações, poesia, amor não satisfazem,
Se me desamparares, tombarei.

Ó Chico, além de nós é o tempo dissolvente,
Amantes que nos beijam, telefones que nos chamam, cartas que escrevemos
E esta ânsia louca de fugir do tédio,
Que é o mais trágico e mortal de todos os venenos.

Vamos, Chico, a memória dos versos não comove,
Guardemos o epitáfio, pois degrada,
Deixemos este crime para os vivos,
Que a poesia não resolve nada.

Vamos, Chico, quero cobrir meu Deus de desespero,
Vamos depressa antes que o sol me chame
A outro mistério que não sejas tu.
 
NOTA: Poesia escrita em Belém pelo poeta santareno e publicada em 26 de novembro de 1944 no “O Jornal”, do Rio de Janeiro.

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