quarta-feira, 25 de março de 2020

Sobre Epidemias em Santarém (parte final)

Por Sidney Augusto Canto

Em 1850 uma grande epidemia de febre amarela se manifestou em Belém. Sabedores das notícias vindas da capital, o povo se voltou para a fé no santo padroeiro católico contra as pestes: São Sebastião, bem como aos tiros dados pelos canhões. De algum modo, talvez pela falta do vetor da doença (o mosquito Aedes Aegypti), a doença não chegou à Santarém e a cidade se viu agradecida a São Sebastião, sem, contudo, lhe construir a Capela prometida.
Depois de terminada a epidemia de cólera, a febre amarela chegou entre os santarenos, manifestando-se com frequência nos anos seguintes. Em 1860, entretanto, a doença se manifestou de tal sorte que flagelou a muitas pessoas na cidade. Em seu relatório de 15 de agosto de 1860, o presidente da Província, Angelo Thomaz do Amaral, assim se manifesta sobre a epidemia:

A epidemia de febres de máo caracter reinante no municipio de Santarem continua a flagelar os habitantes de Maicá e Urumanduba, e tem-se propagado a outros lugares, e ultimamente até Alemquer. Tenho autorisado os creditos necessarios para suprir a respectiva enfermaria provisoria com medicamentos e dietas, e ultimamente recommendei ao dr. José Virissimo de Mattos que remettesse á Alemquer os medicamentos necessarios, e recebesse na enfermaria os doentes que dali viessem. Igual recommendação fiz á camara municipal de Santarem, á qual se acha encarregado o suprimento e manutenção da enfermaria; commissão que tem desempenhado por maneira digna de elogio.

Maicá e Urumanduba se apresentam como foco da doença, por conta de suas áreas frequentemente alagadas, o que favorecia a proliferação do vetor (mosquito). A ocupação dessas áreas, de forma cada vez mais crescente pelas pessoas, sem os devidos cuidados, fez com que a disseminação da doença se tornasse mais frequente. Prova disso é que, aliada à febre amarela, a cidade também vivia diversos surtos epidêmicos de malária. Além disso, outros dois importantes fatos também colaboraram com a disseminação de epidemias:
O primeiro deles foi a introdução da navegação à vapor entre a capital da Província e as cidades do interior, até Manaus. Uma viagem que demorava de 15 dias a um mês inteiro, dependendo dos ventos, passou a ser realizada entre 4 e 5 dias. Isso ajudou a disseminação de doenças pelo interior. O segundo, o início da exploração e importação da borracha favoreceu a vinda de muitos migrantes que, ajudavam a disseminar as doenças com maior facilidade.
O Estado pouco fazia diante dos surtos no interior. Santarém não possuía nem um hospital e, muito menos um médico para atender o povo. Somente em 1868 é criado o cargo de Médico da Comarca de Santarém. Até então, a cidade era atendida por um médico “em Comissão”. O primeiro médico da Comarca de Santarém foi o dr. Antônio Joaquim Gonçalves do Amaral, que era genro do Barão de Santarém e futuramente seria eleito Senador do Império do Brasil. Devido às divergências políticas existentes na província (muitos liberais eram oposicionistas do médico, que era membro do partido conservador), o cargo de médico da Comarca foi abolido menos de dez anos depois de criado. A introdução de um médico na Comarca melhorou as condições de saúde, conforme relata Ferreira Penna:

As condições sanitárias de Santarém são hoje incontestavelmente melhores. Podem mesmos serem excelentes talvez, se os habitantes se resolverem a ser mais cuidadosos neste interesse, e se o governo mandar realizar a obra já estudada e orçada de encanamento da água do Irurá, obra essencial para a saúde pública em Santarém.

Infelizmente demorou UM SÉCULO para que o encanamento de água do Irurá fosse realizado, o que, por si só já pode assegurar a falta de responsabilidade do governo para com a saúde da população em nossa região. É bom salientar também que, esse período de riquezas, que advinham da exploração da borracha, não representou melhoria do quadro de saúde da população, conforme podemos constatar nas palavras de Antônio José Souto Loureiro:

Além da especulação de preços nas bolsas, favorecendo os investidores nas novas plantações da Ásia; dos impostos do Acre e das divisas da Amazônia, aplicados no Sul, na construção de estradas de ferro e portos, no saneamento do Rio e financiamento da imigração; e apesar do mercado exportador estar na mão de um oligopólio e do irreparável desperdício gerado pela improbidade administrativa de governos estaduais corruptos, o principal fenômeno retardador do progresso regional, que não permitiu à região atingir patamares similares aos de São Paulo, foi o produzido pela insalubridade, aqui incluídas algumas doenças e a má qualidade de vida nos seringais, sorvendo dezenas de milhares delas, substituídas anualmente por novas levas, com um sistema econômico baseado em uma cadeia de exploração comercial, incapaz de criar riqueza no local onde ela estava sendo gerada, pois que estabelecida sob um sistema de enfeudamentos comerciais, em que os lucros reais eram realizados nas bolsas de Nova Iorque e de Londres.

No ano de 1918, após uma grande enchente que desestabilizou o comércio local, Santarém ainda sofreria uma das mais cruéis epidemias depois das anteriormente relacionadas, a da influenza (também chamada de gripe espanhola ou dançarina que, apesar do nome, não tem origem na Espanha). O mal chegou por água. É possível que pelo Vapor “São Luiz” ou pelo “Valparaiso”, que por aqui passaram logo após a epidemia ter surgido em Belém. Vinham trazendo alguns doentes a bordo. E, como no “São Luiz” fosse necessário trocar parte da tripulação que já estava acometida da doença, a epidemia ficou e se espalhou pela cidade em fins da segunda quinzena de outubro. A ausência de uma inspeção e de atitudes severas de impor uma quarentena, fizeram a Gripe Espanhola desembarcar em Santarém.


       O “beijo” proibido pelo Influenza

Contudo, somente no dia 01 de novembro, o Intendente municipal telegrafava ao Governador Lauro Sodré, informando que a influenza havia irrompido em Santarém. Neste mesmo dia foi decidido que os navios do "Lloyd Brasileiro" não mais tocariam nos portos de Santarém e Óbidos, o que fez reduzir o impacto de novos doentes que pudessem descer e contaminar a população destas cidades. Em Santarém, raramente se encontrava uma casa onde que ninguém ficou doente ou em que a epidemia não houvesse ceifado uma ou mais vidas em terras tapajônicas. Novamente o povo se volta para São Sebastião, o “Protetor da Peste”. Desta vez, o santo já possuía sua capela, construída a partir de 1872, no bairro da Prainha. O jornal “O Estado do Pará” de publicou, em primeira página, uma receita proposta cientificamente para o controle da Gripe Espanhola (Influenza), que podemos ver reproduzida acima. Do mesmo jornal podemos extrair uma propaganda, também interessante, que ilustra o uso de remédio para a Malária à base de quinina, para ser utilizado no combate à Gripe Espanhola (reproduzido abaixo).


         Remédio da Malária curando a Gripe Espanhola

A ausência de ações preventivas e também de investimentos na área da saúde, pelo governo, acabou por abalar não somente a vida saudável das pessoas, mas também a Economia. Na verdade, no Pará, a Gripe Espanhola também veio acompanhada de uma crise econômica, aumento de preços, fome das pessoas pobres, paralizações e até mesmo greves de trabalhadores. Por outro lado, também foi marcada pela solidariedade humana.
Em Santarém, essa solidariedade figurou na Igreja Católica, que procurava oferecer o conforto espiritual e temporal. Foram realizados cerca de 350 sacramentos de unção para enfermos. Oito Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição (popularmente conhecidas como Irmãs do Santa Clara) fizeram 6.104 visitas e distribuíram 7.036 medicamentos para socorrer aos pobres doentes naqueles dias. O governo do Estado socorreu a cidade de Santarém com uma ambulância de medicamentos.
Aliás, foi a Igreja Católica, na pessoa de seu Bispo Prelado, Dom Amando Bahlmann, OFM, que assumiu a responsabilidade de construir e inaugurar o primeiro HOSPITAL para a cidade de Santarém, fato que só aconteceria no ano de 1930, e que muito ajudou no combate às epidemias que, vez ou outra, continuavam a ameaçar a saúde e a vida dos santarenos. Um hospital público viria a ser efetivado somente em fins de 1942, com a fundação do Hospital do Serviço Especial de Saúde Pública – SESP.
Por fim, algumas considerações para nossa reflexão: Epidemias são sempre frequentes na história humana, também na nossa história regional e local. Quanto mais frequente é o movimento comercial, tanto mais também frequente e fácil se torna a propagação de epidemias virais ou bacterianas. No caso da epidemia de cólera, a cidade vizinha de Monte Alegre nos ensina que o isolamento e quarentena impostos é a melhor maneira de evitar contágio e, principalmente, mortes. Ter o cuidado básico com a higiene, o tratamento de águas e esgotos, hospitais com capacidade e capacitação técnica e, principalmente, investimento em ensino e pesquisa evitam que as epidemias se propaguem com facilidade e evita mortes. Por fim, epidemias matam ricos e pobres, contagiam trabalhadores e patrões, são criadoras de crises sociais e econômicas. Podem acontecer a qualquer momento e afetar o mundo inteiro. A solidariedade ainda é um caminho que ajuda não somente na superação como no alívio para a dor e a fome dos que sofrem. São ensinamentos da história para a nossa vida. Infelizmente, a história também mostra que essas lições são muitas vezes ignoradas e esquecidas, principalmente pelos governantes. A epidemia reinante, de “corona vírus”, vai nos deixar lições, algumas, talvez, sejam as mesmas do passado que teimamos em ignorar. Que seja hora de mudarmos diante daquilo que a História nos ensina.

Referências

Bettendorf, J. F. (Padre). Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão. 2ª Edição. Belém: Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

Canto, S. A. (Padre). Regional.doc: A história do Baixo Amazonas e Tapajós registrada em documentos. Santarém: Editora e Artesanato Gráfico Tiagão, 2014.

Costa, C. A. A. Oswaldo Cruz e a febre amarela no Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1973.

Loureiro, A. J. S. História da medicina e das doenças no Amazonas. Manaus: Gráfica Lorena, 2004.

Penna, D. S. F. A Região Ocidental da Província do Pará: Resenhas Estatísticas das Comarcas de Óbidos e Santarém. Belém: Typographia do Diário de Belém, 1869.

Santos, P. R. dos. Tupaiulândia. Santarém: ICBS/ACN, Gráfica e Editora Tiagão, 1999.

Vianna, A. As Epidemias no Pará. 2ª Ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1975.


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