terça-feira, 24 de março de 2020

Sobre Epidemias em Santarém (parte 01)


Por Sidney Augusto Canto

Nestes dias de quarentena, por conta do “corona vírus”, aproveito para fazer um breve relato de algumas coisas do passado que, muitas vezes, deixamos de aprender, fazendo com que a histeria dê lugar à prevenção, e que nossos governos deixem de investir na saúde e na educação para tratar apenas da economia, deixando a própria economia à mercê das constantes epidemias que nos afetam.

Santarém, nossa região do Baixo Amazonas e Tapajós, bem como o nosso Estado e nosso País, já foram vítimas de muitas epidemias. As primeiras delas foram registradas pelos colonizadores que, por sinal, foram os responsáveis pelas primeiras “pandemias” no “Novo Mundo”. Milhares de indígenas morreram de doenças como sífilis, gonorreia, febre tifoide e, muitas vezes, de uma simples gripe. Todas elas se espalharam pelo encontro entre dois mundos diferentes, um dos quais nunca tinham “experimentado” tais bactérias ou vírus. Mas os portugueses também sofriam pelas “febres” causadas pelas doenças tropicais que encontraram em nossa terra, principalmente as que eram transmitidas pelos mosquitos.
Um dos relatos mais antigos sobre a situação da saúde dos indígenas no vem da lavra do próprio padre João Felipe Bettendorff, que, em suas crônicas fala, alguns anos depois de ter fundado a Missão que os seus ares já não são tão maus como dantes eram. Bebe-se água do rio a qual assentada não faz mal. Subir o rio Tapajós era também perigoso aos portugueses. O padre Bettendorff faz uma interessante descrição, em sua “Crônica” de uma tropa de resgate portuguesa que procurou escravos no rio Tapajós, no século XVII:

Andou esta tropa primeiro pelo rio dos Tapajós, com esperanças de um grande negócio, que tinha prometido um famoso escravista daquele sertão, por nome Pascoal Ferreira, natural do Maranhão, e com estas esperanças lá se foi detendo abaixo de umas cachoeiras, entre pragas de moscas e mosquitos, que além das doenças iam molestando a todos, até que desenganados se retiraram e entraram pelo rio das Amazonas, queixosos de não terem dado com os escravos que se lhes tinha prometido, dando também a culpa ao missionário, totalmente inocente, quando Pascoal Ferreira tinha toda a culpa, e vendo frustradas as suas esperanças, adoeceu de melancolia, de que morreu, sem querer vir abaixo buscar confessor para se pôr bem com Deus, como lhe convinha para sua salvação; e como a vida é o espelho da morte e comumente morre cada qual como viveu, havia este miserável de ir pelo caminho que levam outros seus semelhantes, por morrer com a ocasião junto à sua rede.

Um fato histórico ligado à uma epidemia, é a fundação da Vila de Boim. Em 1737 o padre José Lopes transferiu a Missão de Santo Inácio dos Tupirambaranas, do lago existente no hoje município de Parintins, no Amazonas, para o local atual, no rio Tapajós. O motivo que levou à transferência da dita missão foram as muitas febres, principalmente malária, de que padeciam os indígenas no antigo lugar de sua missão.
Os indígenas lidavam com as doenças de modo peculiar. Tinham na pessoa do “pajé” aquele que exercia o papel de médico e, em algumas aldeias o contato com o mundo espiritual. Detentor de uma sabedoria própria da cultura indígena, o pajé era mal visto, principalmente pelos missionários, que viam nele uma figura quase como demoníaca ou trapaceiro e enganador. Alguns pajés eram bons, outros não (e eram tratados como feiticeiros). Quando não conseguia sucesso em suas curas era morto, ou então jogava a culpa para algum desafeto, a quem sentenciava de morte acusando de feiticeiro causador da enfermidade incurável.
No início do século XIX, a pajelança ainda era muito praticada na então Vila de Santarém, a ponto de, em uma das reuniões da Câmara Municipal de Santarém, ser aprovada uma proposta que proibia o trabalho de Pajés, Adivinhões e Curandeiros, que faziam que várias pessoas morriam a todo o tempo por procurarem seus “embustes” e não buscarem o tratamento de outra forma pela medicina, estabelecendo como pena multa de quatro mil reis ou prisão de oito dias na primeira vez e o dobro de multa ou de prisão em caso de reincidência.


Ao longo dos anos as epidemias marcaram a vida e a história (bem como a economia) da região. No início do século XIX, uma epidemia que assolou a nossa cidade e região foi a da “lepra”. Aparecendo os primeiros doentes em fins do ano de 1830, preocupado e temendo que a vila toda se tornasse um grande Lazareto, o presidente da Câmara pediu que os facultativos que residiam na vila formassem uma Comissão de Saúde Pública que se tornassem responsáveis de sanar o mal da lepra ora reinante, bem como de fazer prevenções para outras novas epidemias que possam vir a flagelar a população da Vila.
Na sessão seguinte, a 11 de dezembro, foram chamados perante a Câmara os facultativos Raymundo Jozé Rebello e João Matheus Tarssom, que foram encarregados pela Câmara para fazer as diligencias necessárias e apresentar propostas para a Saúde Pública da Vila. A comissão apresentou, a 14 de dezembro, as seguintes medidas policiais para a conservação da saúde pública e conter a propagação da lepra em Santarém:
1º. Favorecer por todos os meios possíveis a circulação do ar atmosférico;
2º. Entreter nas ruas e praças a maior limpeza possível, não permitindo imundícies, animais mortos ou qualquer corpo em putrefação;
3º. Evitar, nas Tavernas, a venda de produtos corruptos e licores sofisticados;
4º. Vigiar o asseio dos Açougues e proibir a venda de carne de animais mortos de moléstia;
5º. Condenar a multas os donos das casas defronte das quais tiver pedaços de vidro, pregos e outros corpos capazes de cortar os pés dos pretos e ou outras pessoas descalças;
6º. Estabelecer um Cemitério e nunca mais consentir enterrar dentro da Igreja ou em outra qualquer parte do recinto desta Vila;
7º. Promover a prática da vacina, mandando treinar em todos os lugares e sítios pessoas capazes de discernir entre a boa e verdadeira vacina e a falsa vacina, que deve ser evitada.
8º. Para conter a propagação da lepra, enquanto a Câmara não estabelecer um Lazareto, onde possam os leprosos viver comodamente e absolutamente separados da sociedade, a Câmara deve MANDAR SAIR FORA DESTA VILA todas as pessoas infectadas da lepra, sem distinção de hierarquia, brancos e brancas, pretos e pretas, pardos e pardas, proibindo-lhes debaixo de pena rigorosa, JAMAIS aparecer na Vila, e que oficie ao reverendo vigário a fim de não consentir casar os leprosos, e ainda menos uma pessoa sadia com uma pessoa infectada, porque no primeiro caso os seus descendentes herdam da moléstia, e no segundo continuam com força a contaminação.

(continua...)

NOTA: Ilustração do Bairro da Aldeia, em Santarém, feita por Hércule Florence no ano de 1828.


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