domingo, 1 de maio de 2016

Uma carta sobre Fordlândia – 1931

Boa Vista, 20 de março de 1931.
O rio Tapajós é majestoso, com suas margens bordadas de terras firmes, suas ilhas verdejantes e sua água cristalina.
Porque esta parte da Amazônia parece a mais velha, os rios já estão formados, o que observa no caso das terras firmes. Nos rios em formação, como os do Acre, não se encontram terras firmes confrontando-se, nas margens dos rios. Quando uma margem é alta, a outra é baixa. Aqui não, há margens altas correspondentes.

Outra experiência é a limpidez das águas. O rio Tapajós, quer de seca, quer de cheia, tem sempre as águas claras. É que não há desmonte de terra, quebra de barrancos, isto é, o leito é imutável, está completamente formado.
Viajando-se pelo rio Tapajós tem-se, de longe, a impressão de que se está em Amazonas de águas claras e transparentes, tal a largura que apresenta. Mas é de pouca profundidade, o que torna difícil a navegação principalmente na estação seca.
Depois de dezoito horas de navegação regular, chega-se a Boa Vista, sede da “Companhia Ford Industrial do Brasil”, que o povo já batizou por Fordlândia.
A primeira impressão que se tem, tendo-se atravessado, vindo de Manaus ou de Belém, zonas sem vida, mortas ou quase pela eterna crise que comprime a Amazônia há anos, é que se está em um país estranho.
De longe, se de dia, vê-se autos, caminhões, tratores, num movimento ininterrupto; operários, trabalhadores, num vai e vem frenético, apressado, contínuo.
Ouve-se o arfar da usina colossal que produz energia elétrica para movimentar a serraria monstruosa que recebe os toros como vem da mata e o devolve em tábuas, pranchas, pranchões, pinos, vigas, tudo já aparelhado e pronto para o emprego imediato, saindo já nas dimensões das obras que se tem em vista construir; que impulsiona uma bomba enorme que aspira água do Tapajós e a remete para um filtro colosso, pois a água consumida em Boa Vista é preparada sobre todas as regras de higiene; e, finalmente, que produz luz esplendida que ilumina dois povoados durante toda a noite.
Boa Vista tem o solo acidentado, compondo-se de diversas colinas, que estão ligadas por pontes de madeiras sólidas.
Na primeira colina estão as instalações da gerência; armazém, escritório, usina, garagens, galpões para depósito de material, almoxarifado.
O porto é servido por um trapiche de madeira solidamente construído, tendo guindastes, rails para vagões e tem largura suficiente para dois caminhões.
Na baixa, entre as duas colinas, logo adiante da ponte, estão os barracões para o pessoal, de mais ou menos vinte metros por dez, refeitório e dormitório.
Em seguida, já na outra colina, começa a Vila Operária, que se compõe, por enquanto, de umas trezentas casas de madeira, cobertas de uma telha de papelão (negra), onde só residem famílias do pessoal empregado na Companhia. Na terceira colina, por trás dessas duas, estão as instalações hospitalares e residência do corpo médico (três) e dos enfermeiros.
Meticuloso como é o Ford, pode-se imaginar da perfeição de tais instalações.
As residências do pessoal, diretor e técnico, é de todo o conforto, completamente teladas, dando a impressão de que se reside em uma gaiola.
Escusado é dizer que por toda parte há luz e água canalizada.
As plantações de seringa já abrangem 1.200 hectares, devendo a Companhia plantar mais 600 este ano, findando assim o seu compromisso com o Estado do Pará.
Os serviços foram interrompidos pela estúpida e incompreensiva revolta do pessoal em dias de Dezembro, que fez depredações e estragos arrebentando a louça e vidros de máquinas, pondo à água caminhões e outras selvagerias, tudo por questões que poderiam ser resolvidas por uma greve pacífica.
Vão recomeçar agora as construções da Vila Operária, tendo a Companhia projetado uma cidade que virá dar vida a esta zona fertilíssima do Pará.
Uma estrada de ferro de um metro e 44 de bitola, penetra a propriedade da Companhia , tendo já 7 (sete) quilômetros de linha, sendo pensamento da gerência leva-la até Santarém, por um lado e por outro penetrar esta zona, facilitando o transporte e o intercâmbio comercial.
O que não é muito bom é que para ser admitido na Companhia passa-se por uma inspeção médica rigorosíssima, por insignificante que seja, é motivo para ser dado como inapto para trabalhar no domínio do Ford.
Benedito Belém”.


NOTA: Publicado no Jornal A Reforma de 14 de abril de 1931. O autor era engenheiro e geógrafo, a serviço no rio Tapajós. Boa Vista é o nome oficial do lugar onde se localiza Fordlândia. Infelizmente, em frente de Fordlândia, o rio Tapajós não tem mais uma água cristalina como descrita na carta.

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