Abaixo transcrevemos um ofício
dirigido ao Presidente da Província do Pará, escrito pelo Dr. Francisco da
Silva Castro, inspetor da saúde pública da mesma província, apresentando
detalhes sobre o estado sanitário do Pará no ano anterior ao que o ofício foi
escrito.
“Ilmo. e Exmo. Sr.
Em resposta ao
oficio de V. Ex. de 31 do passado, em que me ordena, haja de o informar sobre
qual o estado da salubridade pública nesta província durante o último ano,
tenho a declarar, que tanto na capital, como pela província toda, em geral foi
esse estado o mais lisonjeiro e satisfatório possível no primeiro semestre do dito
ano, não sucedendo porém o mesmo no segundo.
Nenhuma epidemia
se desenvolveu no correr daquele primeiro período; nenhum caso de febre-amarela
foi observado; nenhum também de cholera-morbus epidêmico; apenas a cholerina
reinou em não pequena escala aqui, e por quase todo o interior, porém sempre
sob a forma e caráter benigno; a varíola ou bexigas ameaçou a população da
capital nos meses de abril, maio e junho, atacando certo número, aliás pequeno,
de indivíduos, dos quais dez foram vítimas, sendo três na capital, e sete na
enfermaria de Tucumduba; além de nove morpheticos do hospício daquele nome, que
foram acometidos do contágio, e que
faleceram.
A Varíola, que parecia
quase extinta no fim daquele primeiro período de tempo, tomou depois disso
algum vulto nesta Capital, e no mês d'agosto crescido era o número dos
afetados, sendo a maior parte deles não de varíola propriamente dita, mas antes
da varioloide. O seu maior incremento observou-se nos meses de outubro e
novembro, havendo começado manifesta a sua declinação em dezembro.
Não posso
precisar ao certo o número dos afetados, por falta de dados estatísticos
seguros e positivos; todavia creio, baseado em certas informações e
circunstancias, que 1/10 da população aproximadamente, isto é, cerca de três
mil indivíduos, tem sido invadido desse flagelo. O número dos falecidos, vítimas
desta enfermidade, desde o seu desenvolvimento até ao fim do ano, segundo a
estatística do cemitério, é de duzentos e cinquenta e um, o que corresponde a
pouco mais de oito por cento.
Da capital
irradiou-se esta doença pelos sítios, engenhos, e fazendas rurais circunvizinhas,
e depois salteou muitos lagares e povoações do interior; mas por todos esses
pontos não assumiu o caráter epidêmico; apenas alguns casos esporádicos se
poderão contar aqui e ali, e em geral terminando favoravelmente. Deveu-se este
benefício ao absoluto isolamento, a que de pronto eram submetidos os enfermos,
e a outras cautelas postas em prática pelos donos das roças, sítios e engenhos,
e pelos habitantes e autoridades das pequenas localidades do interior da
província, por onde o mal ia grassando. No segundo período do ano, como havia
sucedido no primeiro, nenhum caso de cholera, ou de febre amarela, foi
observado, e a mesma cholerina que tão frequente se mostrava no primeiro
semestre, desapareceu completamente neste.
Em Santarém
(comarca do Baixo-Amazonas) manifestou-se a rubéola ou sarampo, e a disenteria
ou câmaras de sangue, mas em tão limitado numero de casos, que em breve tempo
se extinguiram ambas essas enfermidades.
Ali, bem como por
todo o sertão, reinou notavelmente a evolução das febres-intermitentes de todos
os tipos como sempre costuma suceder todos os anos por ocasião da vazante dos
rios, isto é, no verão, época em que ficam depositadas pelas suas margens
muitas substancias orgânicas vegetais e animais em decomposição, as quais dão
origem a miasmas paludosos, fonte geradora daquelas febres.
Independentemente
daquele tempo, e desta condição, lugares há no vale do Amazonas, onde as
mencionadas febres são endêmicas, e assumem muitas vezes um caráter maligno e
mortífero, devido a sua pathogénesia particular, tais são Macapá, Mazagão,
Jary, Gurupá, Porto-de-Moz, Almeirim, e outros.
Tanto por motivo
da varíola, como das febres intermitentes, foi o Governo solícito em ministrar à
pobreza desamparada os precisos socorros de medicamentos, e dietas. Na capital
todos os médicos se prestaram a tratar gratuitamente os enfermos pobres afetados
de varíola, e o fizeram com verdadeira dedicação. Pelo interior, na falta
absoluta de facultativos, serviu de médico o Diretório impresso, de que junto
envio um exemplar, o qual foi espalhado com profusão por todas as localidades
por intermédio das autoridades, e pessoas caridosas.
A vacina muito
contribuiu para termos de registrar aquela pequena cifra na mortalidade pela
varíola. Tem-se aqui experimentado em diversas épocas a invasão deste flagelo,
sendo de todas a mais notável a de 1818, em que, segundo referem pessoas antigas,
consta haverem perecido dessa epidemia perto de cinco mil pessoas. Depois disso
tem sido sempre muito decrescente o algarismo da mortalidade nas diferentes epidemias,
que se foram sucedendo, tais são, as 1835 e 1852, não havendo subido neste
último contágio o número de vítimas acima de seiscentos.
A vacinação
tem-se feito sempre com mais ou menos regularidade; nestes dois últimos anos
porém, particularmente no passado, foi esse serviço desempenhado com bastante
assiduidade, e posso assegurar que a maioria dos médicos aqui residentes se
prestaram gratuitamente à propagação desse excelente preservativo com toda a
dedicação, e filantropia.
Para o interior
da província remeteu-se grande porção de “pús vaccinico” em laminas, e até
mesmo em pústulas nos braços. Se por toda a parte não se logrou o desejado
efeito, propagando-se a vacina, em algumas estendeu-se esse formidável benefício
a muitas centenas de pessoas, tais foram Santarém, Cametá, Gurupá e Óbidos.
Esta epidemia
veio uma vez mais confirmar a eficácia, e valor real da vacina, por quanto
aqueles que haviam sido vacinados, mesmo de ha muitos anos, atravessaram
incólumes por meio dos afetados da varíola, e não experimentaram o mais leve incômodo.
Muitos desses sujeitos haviam sido vacinados ha 30, 25, e 20 anos atrás, e
apresentavam marcas ou sinais de pústulas vacínicas verdadeiras ou genuínas.
Estes exemplos, que são numerosos, não só falam bem alto a favor da
importância, e verdade, da vacina, como não menos contra o erro, em que laboram
muitos médicos, que sustentam a necessidade da revacinação. Para mim é facto
averiguado, e fora de toda a dúvida, que a vacina, uma vez reconhecida como boa
e verdadeira, preserva por toda a vida do sujeito vacinado, e portanto desnecessária
se torna a revacinação depois de passado certo número de anos, como sustentam e
aconselham alguns práticos.
Outro fato, que
predeu seriamente a minha atenção, foi o avultado número de casos de varioloide,
ou varíola espúria, bastarda, ou degenerada, verificando-se esses casos em
sujeitos, que haviam sido vacinados em épocas diferentes. Depois de alento
estudo, e minuciosas indagações cheguei a estas conclusões, 1ª) que a vacina
neles desenvolvida não havia sido a verdadeira, mais sim falsa, 2ª) que, apesar
de falsa, havia, contudo, trazido aos pacientes a grande vantagem, ou beneficio,
de os libertar da varíola, embora ficassem cativos da varioloide, moléstia em
geral sem perigo, e isenta dos riscos, deformidades, e defeitos, que aquela soa
acarretar sobre o corpo humano, 3ª) que a vacina verdadeira não só livra ou
preserva da varíola, mas também quase sempre da varioloide, 4ª) que é da
manifestação da varioloide em sujeitos vacinados, de onde nasce descrença do povo a respeito das virtudes ou
qualidades profilácticas da vacina, 5ª) que a evolução da varioloide é sempre
precedida de sintomas gerais mais incômodos e duradouros do que na varíola,
pronunciando-se entre outros notavelmente a cefaleia e os vômitos obstinados,
que denunciaram a irritação das membranas do cérebro, fenômenos estes que cessam,
logo que a erupção vesiculosa começa a manifestar-se na pele em maior ou menor
escala.
À vista destas
considerações, um dos meus maiores e desvelados cuidados foi fazer capacitar ao
povo a proficuidade da vacina, embora ela nem sempre livrasse plenamente a
humanidade do grande e horrível flagelo das bexigas ou varíola. É preciso
demostrar aos incrédulos com factos irrecusáveis, que a vacina produz inquestionavelmente
um extraordinário bem no seio da sociedade moderna, e disto me ocupei com
incansável zelo e constância.
Assim pudesse a ciência
médica conquistar no terreno das descobertas outro igual remédio contra a
syphilis, esse novo prothêo dos tempos modernos, cujos estragos, desordens, e
consequências fatais por ele produzidas lenta, mas perenemente, no seio da fisiologia
social avultam mais do que os males ocasionados pelo “cholera-morbus-asiatico”,
quando a largos intervalos visita as populações da Europa ou América!
Eis, excelentíssimo
senhor, quanto se me oferece ponderar a V. Ex. acerca da salubridade pública
desta província no ano que acaba de expirar.
Deus guarde a
V.Ex. Pará, 17 de janeiro de 1867.
(Ao) Ilmo. e Exmo.
Sr. Dr . Pedro Leão Vellozo, digníssimo presidente da província.
Dr. Francisco da
Silva Castro, inspetor de saúde publica da província”.
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