sábado, 9 de janeiro de 2016

Ofício sobre saúde na Província do Pará – 1867

Abaixo transcrevemos um ofício dirigido ao Presidente da Província do Pará, escrito pelo Dr. Francisco da Silva Castro, inspetor da saúde pública da mesma província, apresentando detalhes sobre o estado sanitário do Pará no ano anterior ao que o ofício foi escrito.


Ilmo. e Exmo. Sr.
Em resposta ao oficio de V. Ex. de 31 do passado, em que me ordena, haja de o informar sobre qual o estado da salubridade pública nesta província durante o último ano, tenho a declarar, que tanto na capital, como pela província toda, em geral foi esse estado o mais lisonjeiro e satisfatório possível no primeiro semestre do dito ano, não sucedendo porém o mesmo no segundo.
Nenhuma epidemia se desenvolveu no correr daquele primeiro período; nenhum caso de febre-amarela foi observado; nenhum também de cholera-morbus epidêmico; apenas a cholerina reinou em não pequena escala aqui, e por quase todo o interior, porém sempre sob a forma e caráter benigno; a varíola ou bexigas ameaçou a população da capital nos meses de abril, maio e junho, atacando certo número, aliás pequeno, de indivíduos, dos quais dez foram vítimas, sendo três na capital, e sete na enfermaria de Tucumduba; além de nove morpheticos do hospício daquele nome, que foram acometidos do contágio,  e que faleceram.
A Varíola, que parecia quase extinta no fim daquele primeiro período de tempo, tomou depois disso algum vulto nesta Capital, e no mês d'agosto crescido era o número dos afetados, sendo a maior parte deles não de varíola propriamente dita, mas antes da varioloide. O seu maior incremento observou-se nos meses de outubro e novembro, havendo começado manifesta a sua declinação em dezembro.
Não posso precisar ao certo o número dos afetados, por falta de dados estatísticos seguros e positivos; todavia creio, baseado em certas informações e circunstancias, que 1/10 da população aproximadamente, isto é, cerca de três mil indivíduos, tem sido invadido desse flagelo. O número dos falecidos, vítimas desta enfermidade, desde o seu desenvolvimento até ao fim do ano, segundo a estatística do cemitério, é de duzentos e cinquenta e um, o que corresponde a pouco mais de oito por cento.
Da capital irradiou-se esta doença pelos sítios, engenhos, e fazendas rurais circunvizinhas, e depois salteou muitos lagares e povoações do interior; mas por todos esses pontos não assumiu o caráter epidêmico; apenas alguns casos esporádicos se poderão contar aqui e ali, e em geral terminando favoravelmente. Deveu-se este benefício ao absoluto isolamento, a que de pronto eram submetidos os enfermos, e a outras cautelas postas em prática pelos donos das roças, sítios e engenhos, e pelos habitantes e autoridades das pequenas localidades do interior da província, por onde o mal ia grassando. No segundo período do ano, como havia sucedido no primeiro, nenhum caso de cholera, ou de febre amarela, foi observado, e a mesma cholerina que tão frequente se mostrava no primeiro semestre, desapareceu completamente neste.
Em Santarém (comarca do Baixo-Amazonas) manifestou-se a rubéola ou sarampo, e a disenteria ou câmaras de sangue, mas em tão limitado numero de casos, que em breve tempo se extinguiram ambas essas enfermidades.
Ali, bem como por todo o sertão, reinou notavelmente a evolução das febres-intermitentes de todos os tipos como sempre costuma suceder todos os anos por ocasião da vazante dos rios, isto é, no verão, época em que ficam depositadas pelas suas margens muitas substancias orgânicas vegetais e animais em decomposição, as quais dão origem a miasmas paludosos, fonte geradora daquelas febres.
Independentemente daquele tempo, e desta condição, lugares há no vale do Amazonas, onde as mencionadas febres são endêmicas, e assumem muitas vezes um caráter maligno e mortífero, devido a sua pathogénesia particular, tais são Macapá, Mazagão, Jary, Gurupá, Porto-de-Moz, Almeirim, e outros.
Tanto por motivo da varíola, como das febres intermitentes, foi o Governo solícito em ministrar à pobreza desamparada os precisos socorros de medicamentos, e dietas. Na capital todos os médicos se prestaram a tratar gratuitamente os enfermos pobres afetados de varíola, e o fizeram com verdadeira dedicação. Pelo interior, na falta absoluta de facultativos, serviu de médico o Diretório impresso, de que junto envio um exemplar, o qual foi espalhado com profusão por todas as localidades por intermédio das autoridades, e pessoas caridosas.
A vacina muito contribuiu para termos de registrar aquela pequena cifra na mortalidade pela varíola. Tem-se aqui experimentado em diversas épocas a invasão deste flagelo, sendo de todas a mais notável a de 1818, em que, segundo referem pessoas antigas, consta haverem perecido dessa epidemia perto de cinco mil pessoas. Depois disso tem sido sempre muito decrescente o algarismo da mortalidade nas diferentes epidemias, que se foram sucedendo, tais são, as 1835 e 1852, não havendo subido neste último contágio o número de vítimas acima de seiscentos.
A vacinação tem-se feito sempre com mais ou menos regularidade; nestes dois últimos anos porém, particularmente no passado, foi esse serviço desempenhado com bastante assiduidade, e posso assegurar que a maioria dos médicos aqui residentes se prestaram gratuitamente à propagação desse excelente preservativo com toda a dedicação, e filantropia.
Para o interior da província remeteu-se grande porção de “pús vaccinico” em laminas, e até mesmo em pústulas nos braços. Se por toda a parte não se logrou o desejado efeito, propagando-se a vacina, em algumas estendeu-se esse formidável benefício a muitas centenas de pessoas, tais foram Santarém, Cametá, Gurupá e Óbidos.
Esta epidemia veio uma vez mais confirmar a eficácia, e valor real da vacina, por quanto aqueles que haviam sido vacinados, mesmo de ha muitos anos, atravessaram incólumes por meio dos afetados da varíola, e não experimentaram o mais leve incômodo. Muitos desses sujeitos haviam sido vacinados ha 30, 25, e 20 anos atrás, e apresentavam marcas ou sinais de pústulas vacínicas verdadeiras ou genuínas. Estes exemplos, que são numerosos, não só falam bem alto a favor da importância, e verdade, da vacina, como não menos contra o erro, em que laboram muitos médicos, que sustentam a necessidade da revacinação. Para mim é facto averiguado, e fora de toda a dúvida, que a vacina, uma vez reconhecida como boa e verdadeira, preserva por toda a vida do sujeito vacinado, e portanto desnecessária se torna a revacinação depois de passado certo número de anos, como sustentam e aconselham alguns práticos.
Outro fato, que predeu seriamente a minha atenção, foi o avultado número de casos de varioloide, ou varíola espúria, bastarda, ou degenerada, verificando-se esses casos em sujeitos, que haviam sido vacinados em épocas diferentes. Depois de alento estudo, e minuciosas indagações cheguei a estas conclusões, 1ª) que a vacina neles desenvolvida não havia sido a verdadeira, mais sim falsa, 2ª) que, apesar de falsa, havia, contudo, trazido aos pacientes a grande vantagem, ou beneficio, de os libertar da varíola, embora ficassem cativos da varioloide, moléstia em geral sem perigo, e isenta dos riscos, deformidades, e defeitos, que aquela soa acarretar sobre o corpo humano, 3ª) que a vacina verdadeira não só livra ou preserva da varíola, mas também quase sempre da varioloide, 4ª) que é da manifestação da varioloide em sujeitos vacinados, de onde nasce  descrença do povo a respeito das virtudes ou qualidades profilácticas da vacina, 5ª) que a evolução da varioloide é sempre precedida de sintomas gerais mais incômodos e duradouros do que na varíola, pronunciando-se entre outros notavelmente a cefaleia e os vômitos obstinados, que denunciaram a irritação das membranas do cérebro, fenômenos estes que cessam, logo que a erupção vesiculosa começa a manifestar-se na pele em maior ou menor escala.
À vista destas considerações, um dos meus maiores e desvelados cuidados foi fazer capacitar ao povo a proficuidade da vacina, embora ela nem sempre livrasse plenamente a humanidade do grande e horrível flagelo das bexigas ou varíola. É preciso demostrar aos incrédulos com factos irrecusáveis, que a vacina produz inquestionavelmente um extraordinário bem no seio da sociedade moderna, e disto me ocupei com incansável zelo e constância.
Assim pudesse a ciência médica conquistar no terreno das descobertas outro igual remédio contra a syphilis, esse novo prothêo dos tempos modernos, cujos estragos, desordens, e consequências fatais por ele produzidas lenta, mas perenemente, no seio da fisiologia social avultam mais do que os males ocasionados pelo “cholera-morbus-asiatico”, quando a largos intervalos visita as populações da Europa ou América!
Eis, excelentíssimo senhor, quanto se me oferece ponderar a V. Ex. acerca da salubridade pública desta província no ano que acaba de expirar.
Deus guarde a V.Ex. Pará, 17 de janeiro de 1867.
(Ao) Ilmo. e Exmo. Sr. Dr . Pedro Leão Vellozo, digníssimo presidente da província.
Dr. Francisco da Silva Castro, inspetor de saúde publica da província”.


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