quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

"O Diabo na Cidade" em Alenquer – 1909

Apesar de incentivar o teatro religioso, Dom Amando impunha severas criticas ao teatro de comédia popular. Um fato interessante aconteceu em Alenquer, cidade que à época pertencia à Prelazia de Santarém e registrado em suas “Memórias Inacabadas”. Eis o fato:


“Em 1909 fui a Alenquer para assistir a festa de Santo Antônio. O Santo, que é padroeiro da paróquia, é muito venerado. O povo também não fala de Santo Antônio de Pádua ou de Santo Antônio e Lisboa; fala só de Santo Antônio de Alenquer.
As festas atraem sempre alguns que querem fazer negócios e encher os seus bolsos. Em 1909 chegou uma Companhia dramática que queria fazer as suas representações teatrais nos dias da festa. Sem pedirem licença ao Bispo ou ao Vigário , eles ergueram uma tenda ao lado da Igreja e mesmo encostada ao templo.
Talvez tivessem algum receio que afinal o Vigário fizesse reclamação. Por este motivo mandaram dizer ao Vigário que parte do lucro seria em benefício da Matriz: e assim queriam fazer a primeira representação.
Espalharam os boletins. Mas infelizmente estes boletins foram suficientes para eles perderem todo o negócio. Os boletins falavam de exibições misteriosas, e tinham o título: “O diabo na cidade”. Também a tenda ostentava esta inscrição. Já era tarde quando chegaram às minhas mãos os boletins.
Algumas pessoas já tinham comprado os bilhetes de entrada. Era necessário reagir, para que a festa não se tornasse um escândalo. Sem dar outro aviso, fui à igreja durante a novena na qual eu fazia sempre uma prática ao povo. Eu disse ao Sacristão que colocasse uma mesa na plataforma de entrada da Igreja. A mesa haveria de servir de púlpito.
Depois da novena passei pela Igreja e disse ao povo:
- O sermão é fora.
Subi na mesa e disse que o ar livre era mais agradável que o ar abafado da igreja e que por isto queria fazer o sermão na praça. Continuei:
- Mas o que é que estou vendo? Aqui ao lado da Igreja, aos pés de Santo Antônio, uma choupana “O diabo na cidade”?  O povo não está mais contente com Santo Antônio? – Não admito tal profanação. Ninguém entre neste teatro, proíbo terminantemente este escândalo. Quereis uma representação? Pois bem, vou fazer-vos uma representação, vou fazer a descrição do último juízo.
E fiz um sermão sobre o último juízo com toda a energia de que podia dispor.
O efeito foi extraordinário. Ninguém, ou quase ninguém, quis mais assistir ao Teatro. Até a meia, o Revdo. Vigário e eu tivemos serviço de confessionário.
Mas a companhia dramática não ficou contente e queria reagir. Fizeram reclamação ao Intendente. Este dirigiu os empresários  a mim. Vieram. Perguntaram se eu tinha autoridade para agir assim. Respondi:
-Sim! E para mais ainda. Se não ficarem calados, eu mando destruir já a tenda e levar a palha para o rio.
Depois eu disse ao povo que se ainda assim houvesse representação na tenda do Diabo..., eu haveria de levar a imagem de Santo Antônio para Santarém, porque os Alenquerenses não queriam mais respeitá-lo e venerá-lo.
Esta ameaça foi uma bomba: a tenda do Diabo ficou fechada e o povo me pediu, por amor de Deus, que não tirasse de Alenquer o Santo. Muitos até queriam agredir os empresários. Não permiti excessos. Os empresários também emudeceram. Este acontecimento teve repercussão em Óbidos e Santarém.

Nestes dois lugares, para mim, teria sido mais difícil tomar uma atitude tão energética. Os empresários foram depois á Óbidos por ocasião de uma festa religiosa. Mas com cuidado escolheram um lugar mais afastado, de onde não podiam perturbar os atos religiosos. Também escolheram outro título para a tenda que construíram”.

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